No dia 08 de abril, o Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) condenou um administrador fiduciário por falhas em seus controles internos, tendo em vista a recorrente prestação de informações incorretas à CVM acerca da liquidez de fundos de investimento sob sua administração fiduciária. A decisão ocorreu no âmbito do Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.011992/2023-24 (PAS). Foi considerado que o administrador infringiu o art. 19 da Instrução CVM nº 558/20151 e o art. 22 da Resolução CVM nº 21/20212.
O PAS teve origem em processos relacionados à atividade de supervisão rotineira de gerência da Superintendência de Supervisão de Investidores Institucionais (SIN) sobre a gestão de liquidez de fundos de investimento abertos. Após identificar, em diversas ocasiões, a prestação de informações incorretas a respeito da liquidez de fundos de investimento administrados pelo acusado, a SIN constatou que a recorrência das inconsistências, que deram origem ao envio de diversos ofícios de alerta, não caracterizaria uma soma de erros isolados, mas uma prática recorrente, especialmente diante dos compromissos de correção reiteradamente descumpridos.
Para a SIN, que lavrou o Termo de Acusação, essa recorrência de falhas caracterizava um problema mais amplo, relacionado aos mecanismos de gerenciamento de liquidez utilizados pelo administrador fiduciário, o que dificultaria o levantamento de informações fidedignas sobre a real situação dos fundos sob sua administração.
A SIN destacou, na acusação, que a área técnica utiliza um modelo de supervisão de gestão de liquidez dos fundos por meio do qual são detectados descasamentos entre ativos líquidos e saídas de caixa apresentados, pelo administrador fiduciário, nos informes diários. E, com as reiteradas inconsistências nas informações prestadas, os filtros utilizados geraram falsas indicações de problemas de liquidez, que prejudicaram a atividade de supervisão e que sequer teriam surgido caso o acusado possuísse rotinas adequadas de controles e mecanismos para validar as informações prestadas à autarquia.
Desse modo, a SIN entendeu que a elevada incidência de falsos positivos não seria comum e que tais ocorrências poderiam e deveriam ter sido evitadas, por meio da implementação, pelo administrador fiduciário, de mecanismos de controle, tanto prévios quanto subsequentes, capazes de identificar e corrigir as inconsistências (neste caso, por meio do reenvio das informações de maneira adequada, tendo em vista o prazo de três dias úteis previsto no art. 24, § 1º, da RCVM 175/223, para a retificação dessas informações).
Em seu voto, a relatora do PAS, diretora Marina Copola, ressaltou que a acusação não dizia respeito a problemas de liquidez enfrentados pelos fundos, mas sim ao cumprimento de obrigações de cunho informacional, que estão abrangidas pela noção de gestão adequada de risco de liquidez. Reconhecendo que a SIN comprovou as falhas na prestação de informações sobre a liquidez de fundos de investimento sob administração do acusado, a relatora afastou o argumento apresentado por ele, na fase pré-sancionadora, de que essas falhas teriam sido cometidas por terceiros.
Isso, porque o disposto no art. 59, inciso I, da Instrução CVM nº 555/20144, vigente à época dos fatos e atualmente previsto no art. 24 da Resolução CVM nº 175/20225, estabelece expressamente que a responsabilidade pelo envio dessas informações recai sobre o administrador fiduciário, que deve possuir mecanismos compatíveis para verificar se os dados recebidos de terceiros são fidedignos, por meio da adoção de políticas, procedimentos e controles internos robustos, que permitam a fiscalização diligente dos prestadores de serviço contratados para auxiliar no cumprimento de suas obrigações regulatórias. Assim, ainda que terceiros tivessem concorrido para a materialização das falhas, o administrador fiduciário não se eximiria da obrigação de supervisioná-los e de corrigir eventuais erros antes do envio das informações à CVM.
Um outro argumento apresentado pelo acusado foi o fato de que não houve prejuízo aos cotistas, o que acabou também não sendo acolhido pela CVM. De acordo com o voto da relatora do PAS, a correta prestação de informações à CVM é uma obrigação devida independentemente da existência de danos efetivos, já que o impacto da comunicação inadequada ultrapassa a esfera individual dos cotistas, afetando a supervisão do mercado como um todo. Assim sendo, o dever do administrador fiduciário não se restringe à prevenção de perdas diretas aos investidores, mas inclui a obrigação essencial de fornecer dados precisos e tempestivos à autarquia, permitindo a identificação antecipada de potenciais riscos, inclusive de natureza sistêmica.
Diante (i) das reiteradas e comprovadas falhas, (ii) dos compromissos não cumpridos de correção e revisão das práticas, (iii) do esgotamento das medidas de supervisão (envio de ofícios de alerta) e (iv) da série de falsas indicações de problemas de liquidez, que resultaram na necessidade de sucessivas ações de fiscalização por parte da CVM, a diretora Marina Copola votou pela condenação do administrador fiduciário à pena de multa pecuniária no valor de R$ 255 mil, pelo que foi acompanhada pelos demais diretores.
Embora trate da eficiência dos controles internos do administrador fiduciário de fundos de investimento na prestação de informações, o caso traz à tona a relevante discussão acerca da gestão da liquidez dos fundos de investimento, que é uma responsabilidade compartilhada entre o gestor e o administrador fiduciário, conforme o art. 92 da Resolução CVM nº 175/20226.
Desde o Plano de Supervisão Baseada em Risco do biênio 2021-2022, a SIN tem incluído, como risco prioritário, a supervisão de falhas de diligência no processo de gestão de risco de liquidez em fundos abertos. Atualmente presente no Plano do biênio 2025-2026, a área técnica adota duas ações específicas de supervisão:
- a partir das informações encaminhadas no Informe Diário de fundos de investimento financeiro, a área técnica verifica se o fundo aberto e não exclusivo apresenta situação de liquidez satisfatória ao comparar a liquidez disponível do fundo com as pressões por caixa existentes; e
- utilizando uma modelagem interna para definir um cenário de estresse, a área técnica simula essa situação para testar se os fundos suportariam impactos adversos, como exigido pelo art. 93 da Resolução CVM nº 175/20227 (testes de estresse de liquidez).
Logo, os administradores de fundos de investimento abertos devem utilizar sistemas de gestão de risco eficientes, que permitam a checagem da liquidez dos ativos do fundo em eventos adversos. Além disso, o caso julgado pelo Colegiado evidencia o grau de diligência exigido pela CVM no que diz respeito à manutenção de controles internos efetivos que garantam a integridade das informações prestadas aos investidores e à autarquia, que supervisiona a liquidez dos ativos dos fundos por meio da aplicação de testes de estresse.
1- “Art. 19. O administrador de carteiras de valores mobiliários, pessoa jurídica, deve garantir, por meio de controles internos adequados, o permanente atendimento às normas, políticas e regulamentações vigentes, referentes às diversas modalidades de investimento, à própria atividade de administração de carteiras de valores mobiliários e aos padrões ético e profissional.”
2- “Art. 22. O administrador de carteiras de valores mobiliários, pessoa jurídica, deve garantir, por meio de controles internos adequados, o permanente atendimento às normas, políticas e regulamentações vigentes, referentes às diversas modalidades de investimento, à própria atividade de administração de carteiras de valores mobiliários e aos padrões ético e profissional. Parágrafo único. Os controles internos devem ser efetivos e consistentes com a natureza, complexidade e risco das operações realizadas.”
3- Art. 24. O administrador deve encaminhar à CVM, por meio de sistema eletrônico disponível na rede mundial de computadores, ou de sistema eletrônico disponibilizado por entidade que tenha formalizado convênio ou instrumento congênere com a CVM para esse fim, os seguintes documentos da classe de cotas: (…) § 1º O prazo de retificação das informações é de 3 (três) dias úteis, contado do fim do prazo estabelecido para a apresentação dos documentos.”
4- “Art. 59. O administrador deve remeter, por meio do Sistema de Envio de Documentos disponível na página da CVM na rede mundial de computadores, os seguintes documentos: I – informe diário, no prazo de 1 (um) dia útil; II – mensalmente, até 10 (dez) dias após o encerramento do mês a que se referirem: a) balancete; b) demonstrativo da composição e diversificação de carteira; c) perfil mensal; e d) lâmina de informações essenciais, se houver;”
5- “Art. 24. O administrador deve encaminhar à CVM, por meio de sistema eletrônico disponível na rede mundial de computadores, ou de sistema eletrônico disponibilizado por entidade que tenha formalizado convênio ou instrumento congênere com a CVM para esse fim, os seguintes documentos da classe de cotas: I – informe diário, no prazo de 1 (um) dia útil; II – mensalmente, até 10 (dez) dias úteis após o encerramento do mês a que se referirem: a) balancete; b) demonstrativo da composição e diversificação de carteira; e c) perfil mensal, observado que as questões 5, 6 e 11 a 16 do documento não precisam ser respondidas pelos administradores das classes de investimento dispensadas da obrigação de consolidação, nos termos do § 4º do art. 46 deste Anexo Normativo I; e d) lâmina de informações básicas, se aplicável; III – anualmente, no prazo de 90 (noventa) dias, contados a partir do encerramento do exercício a que se referirem, as demonstrações contábeis do fundo e, caso existentes, de suas classes de cotas, acompanhadas dos pareceres de auditoria independente; e IV – formulário padronizado com as informações básicas da classe de cotas, sempre que houver alteração do regulamento, na data do início da vigência das alterações deliberadas em assembleia.”
6- “Art. 92. Nas classes abertas, os prestadores de serviços essenciais, conjuntamente, cada qual na sua esfera de atuação, devem adotar as políticas, procedimentos e controles internos necessários para que a liquidez da carteira de ativos seja compatível com: I – os prazos previstos no regulamento para pagamento dos pedidos de resgate; e II – o cumprimento das obrigações da classe de cotas. § 1º As políticas, procedimentos e controles internos de que trata o caput devem levar em conta, no mínimo: I – a liquidez dos diferentes ativos; II – as obrigações, incluindo depósitos de margem esperados e outras garantias;”
7- “Art. 93. O gestor deve submeter a carteira de ativos a testes de estresse periódicos, com cenários que levem em consideração, no mínimo, as movimentações do passivo, a liquidez dos ativos, as obrigações e a cotização da classe de cotas. Parágrafo único. A periodicidade dos testes de estresse deve ser adequada às características da classe de cotas, às variações históricas dos cenários eleitos para o teste e às condições de mercado vigentes.”