Boletim Bocater

A incidência de ITCMD na constituição de trusts no exterior

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Utilizado em planejamentos sucessórios patrimoniais, o trust é um arranjo contratual que não existe na legislação brasileira e, assim, merece cautela por parte dos envolvidos na sua constituição.

Trata-se de relação jurídica, não de sociedade/entidade legal, entre três partes que se estabelece à luz de regras vigentes em outros países.  Participam do arranjo:

(i)    o instituidor (settlor), em muitos casos residente e domiciliado no Brasil, que contribui com patrimônio para o fundo (trust fund) constituído no exterior;

(ii)   o administrador (trustee), que administra o patrimônio em favor do beneficiário, garantindo que os ativos sejam utilizados conforme a vontade do instituidor; e

(iii)  o beneficiário (beneficiary), muitas vezes residente e domiciliado no Brasil, que aufere frutos daquele patrimônio ou passa a ser seu proprietário.

Há estruturas que contam, adicionalmente, com a figura do supervisor (protector), uma quarta parte que se incumbe da supervisão da gestão do patrimônio vertido para o trust.

É discutível a questão da transferência de patrimônio, pelo instituidor do trust, para o administrador, uma vez que, em regra, nem um, nem outro podem usar, fruir ou dispor dos bens e/ou direitos vertidos para o trust em benefício próprio. A rigor, somente os beneficiários, tão logo passem a ser os titulares dos bens, direitos e/ou rendimentos do trust, poderão vir a ser considerados proprietários nos termos da lei civil brasileira, uma vez que passam a poder exercer aquelas faculdades.

Em síntese, o instituidor (settlor) transfere o seu patrimônio para o exterior, onde o administrador (trustee) passa a ser responsável por identificar alternativas de rentabilização dos ativos no interesse do beneficiário (beneficiary), além de ter de prestar contas aos demais envolvidos no arranjo.

Regra geral, os ativos vertidos para o fundo (trust fund) não podem ser alcançados por credores quaisquer. Também o instituidor não poderá ser obrigado a lançar mão dos ativos para saldar dívidas.

O trust pode ser:

(i)    revogável, quando o instituidor (settlor) puder desistir do arranjo, caso em que retomará a propriedade dos ativos; ou

(ii)   irrevogável, quando o instituidor não puder desistir do arranjo enquanto viver, ou seja, quando não tiver permissão para reaver a propriedade do patrimônio em vida.

No Brasil, diante da falta de regulamentação e da carência de normas sobre tributação dos fluxos de bens e rendimentos envolvendo trusts, muito se tem discutido a questão da incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) por ocasião da versão do patrimônio para o fundo (trust fund) pelo instituidor. O ITCMD se aplica a transmissões não onerosas de bens e direitos a título de herança ou doação.

No mês de abril deste ano, pela primeira vez, a Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz–SP) se pronunciou a respeito do assunto por meio da Resposta à Consulta 25.543, sobre a incidência do ITCMD na instituição de trust irrevogável fora do país, ou seja, no momento em que a contribuição, pela instituidora, foi realizada para o trust fund.

No caso analisado, o arranjo contemplava instituidor pessoa jurídica estabelecida no exterior, administrador pessoa física residente e domiciliada no exterior e beneficiário, pessoa física residente e domiciliada no Brasil, no Estado de São Paulo.

Em síntese, a Sefaz-SP entendeu que, na essência, no ato de constituição do trust, teria havido doação de ativos do instituidor (settlor) para o beneficiário (beneficiary), ou seja, no momento em que os ativos foram vertidos para o fundo (trust fund), ainda que, àquela altura, não tivessem passado a integrar o patrimônio do beneficiário, já seria devido o ITCMD. Segundo a Fazenda estadual, o administrador (trustee), no exterior, teria recebido os ativos apenas para rentabilizá-los.

O contribuinte alegou que, a partir do momento em que a Fazenda estadual desconsidera que a transmissão dos ativos ao beneficiário somente ocorre posteriormente à instituição do trust, antecipa a ocorrência do fato gerador do ITCMD, o que não seria aceitável sob o prisma da legislação tributária brasileira.

Adicionalmente, sustentou que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Recurso Extraordinário 851.108/SP, deixou claro que o ITCMD não deve incidir sobre doações de bens localizados no exterior por doador estrangeiro, como era o caso.

Por fim, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4.173, que, dentre outras medidas relevantes, como definir os conceitos de trust, settlor, trustee e beneficiary e disciplinar a incidência do imposto sobre a renda de pessoa física (IRPF) em movimentações de recursos envolvendo trusts, estabelece que bens e direitos objeto de trusts no exterior somente passam à titularidade do beneficiário no momento em que são efetivamente distribuídos a ele ou quando do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro.

Caso o Projeto seja convertido em lei, em tese, ficará claro que, diferentemente do entendimento da Sefaz-SP, o ITCMD somente será aplicável às efetivas distribuições (aos beneficiários dos trusts) dos bens e direitos contemplados nos arranjos. Até lá, diante da insegurança jurídica em relação ao tema, certamente teremos aumento significativo da judicialização da controvérsia.

O Bocater Advogados continua a monitorar a evolução das discussões e regulamentação dos arranjos em questão e segue à disposição dos interessados para esclarecer quaisquer questões correlatas.

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