Boletim Bocater

TCU aprova instrução sobre a fiscalização dos fundos de pensão

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No fim de março, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, por meio do Acórdão n° 627/2025, a redação final da Instrução Normativa (IN) n° 99/2025, que dispõe sobre a fiscalização de negociações de valores mobiliários realizada por unidades jurisdicionadas da Corte de Contas federal e sobre o equacionamento financeiro de déficits atuariais nas entidades fechadas de previdência complementar (EFPC ou fundos de pensão) patrocinadas por entidades federais. 

A norma resulta de análises conduzidas por ministros do TCU por intermédio de um Grupo de Trabalho (GT) criado pela Corte no âmbito do processo administrativo TC 024.589/2024-1. A iniciativa surgiu da necessidade de delimitar o controle exercido pelo TCU após um longo período de atuação expansionista sobre as EFPC e o mercado de capitais. Contudo, a versão final da IN nº 99/25, aprovada pelo Plenário do Tribunal, não materializa o papel do TCU como fiscalizador secundário, nem define a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) e as entidades federais patrocinadoras como fiscalizadoras primárias.

Conforme destacado pelo ministro relator, Benjamin Zymler, o texto aprovado pelo Plenário permite que o TCU fiscalize as EFPC de forma ampla e direta. Esse entendimento está alinhado à jurisprudência do Tribunal de que o “aporte de recursos (públicos) pelo patrocinador atrai a competência da fiel e boa aplicação do todo. Existe um múnus público das EFPC ao aplicar esses dinheiros do ente público, praticando uma atividade igualmente de interesse coletivo”. Dentre os acórdãos citados, inclui-se o que reconheceu que os recursos aportados pelos patrocinadores (órgãos e entidades federais) nos fundos de pensão, submetidos à Lei Complementar n° 108/2001, têm natureza pública. Em razão disso, essas entidades atraem a competência do TCU sobre a totalidade das aplicações e investimentos, inclusive dos valores vertidos pelas contribuições individuais dos participantes (Acórdão n° 3.133/2012).

Considerando essa natureza pública dos recursos aportados nos fundos de pensão, a competência do TCU estaria amparada pelo art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, que estabelece a obrigação de prestação contas por parte de qualquer pessoa física ou jurídica (mesmo privada) que utilize, gerencie ou administre recursos públicos. 

O GT, ao esclarecer que não há uma relação de precedência entre as fiscalizações de competência da Previc e patrocinadores e aquelas de competência do TCU em operações com valores mobiliários, se distancia das concepções de controle de primeira e segunda ordem1. Nesse sentido, vale mencionar que a própria Corte de Contas federal reconhece que a sua eventual atuação sobre as EFPC não decorre de competência para fiscalizar o mercado de capitais, mas sim de sua atribuição constitucional de fiscalizar a gestão contábil, financeira, operacional e patrimonial da União e de suas entidades, com foco na legalidade, legitimidade e economicidade.

Excepcionalmente, portanto, de acordo com o normativo recém editado, torna-se viável até mesmo a fiscalização direta e exclusiva do TCU sobre as EFPC, prevista pelo art. 3°, parágrafo único, em decorrência do afirmado caráter público de seus recursos – o que, novamente, fulmina a noção de uma precedência na fiscalização dos fundos de pensão. 

Neste ponto, considerando o texto da IN nº 99/25 associado à natureza pública dos recursos das EFPC (regidas pela Lei Complementar n° 108/2001), é possível traçar um paralelo com a Tomada de Contas Especial-TCE 030.100/2022-4, instaurada pela Susep contra a entidade líder do Consórcio do Seguro DPVAT, julgado recentemente pelo TCU. O processo, que visava apurar possíveis atos irregulares, ilegítimos ou antieconômicos que teriam causado prejuízo ao caixa do Seguro DPVAT, teve como ponto central do debate a própria natureza dos recursos administrados pelos operadores do seguro, aspecto diretamente ligado à competência fiscalizatória da Corte de Contas. 

No caso do Seguro DPVAT, o TCU fez uso da concepção de fiscalizadores de primeira e segunda ordem, estabelecendo que o controle de segunda ordem por parte da Corte de Contas seria a regra, salvo em circunstâncias excepcionais que justificassem sua atuação direta2. Essa posição, no entanto, contrasta com o entendimento adotado no Acórdão nº 627/2025, pela inexistência da relação de precedência sustentada pelos ministros. 

Entretanto, alguns fundamentos utilizados no julgamento guardam relação com as justificativas apresentadas para a redação final da IN nº 99/25, já que o TCU decidiu que a arrecadação compulsória do DPVAT, aliada a seus fins públicos, atrairia, de forma inequívoca, sua competência constitucional para exercer controle externo sobre as seguradoras do consórcio.  

Apesar de seguir firme na fiscalização, sob o argumento da natureza pública dos recursos, cabe destacar que, em comparação com a proposta inicial do GT, feita no ano passado, evidencia-se, na versão aprovada da IN nº 99/25, uma tentativa de autocontenção por parte do TCU. Isso porque algumas mudanças significativas realizadas no seu texto trazem a ideia de maior coordenação entre os agentes fiscalizadores (Previc, patrocinadores estatais e a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais-SEST).  

Esse movimento, em prol de um controle cooperativo (e que busca evitar sobreposições, sobretudo entre Previc e TCU), é perceptível especialmente pela previsão expressa de que a competência do TCU sobre os fundos de pensão será exercida de forma subsidiária e condicionada à autorização do relator (art. 13, parágrafo único). Embora o caput do art. 13 preserve a competência do TCU sobre as entidades patrocinadoras e os órgãos fiscalizadores, a inclusão do parágrafo único denota o objetivo de evitar maiores ineficiências na fiscalização das EFPC.

Outro indicativo de algum nível de moderação por parte da Corte de Contas federal é a incorporação da noção de “ato regular de gestão” como indicador de boa-fé objetiva – conceito desenvolvido pela Resolução Previc n° 23, de 14 de agosto de 2023, e considerado válido pelo Plenário do TCU no âmbito do Acórdão n° 964/24. Nos termos dos incisos do § 1° do art. 4°, uma conduta será considerada como “ato regular de gestão”, quando estiverem presentes três elementos específicos: (i) capacidade técnica e diligência, em cumprimento aos deveres fiduciários em relação à entidade; (ii) dentro de suas atribuições e poderes, sem violação da legislação, do estatuto e dos respectivos regulamentos; e, (iii) fundado na técnica aplicável, mediante decisão negocial informada, refletida e desinteressada.

Além disso, o § 2° do art. 4° da versão aprovada da IN n° 99/25 contém norma orientativa importante para os ministros do TCU, ao analisarem a conduta de gestores das EFPC: devem ser consideradas as informações e dados disponíveis à época em que a decisão foi tomada ou o ato praticado, de acordo com registro dos documentos que fundamentaram a decisão ou ato. Essa previsão é importante no sentido de responsabilizar os gestores apenas pelo que era conhecido e acessível no momento da tomada de suas decisões, vedando-se que o exame de determinada conduta seja realizado unicamente de forma retrospectiva3

O prazo para a Previc enviar ao TCU as avaliações atuariais dos planos de benefícios patrocinados pelos entes federais também foi objeto de alteração. Isso porque os fundos de pensão enviam os documentos e informações atuariais à Previc no dia 31 de março do exercício subsequente, e, como não poderia remeter análise que ainda não dispõe ao TCU, fixou-se o prazo de 30 de abril para o envio. Ou seja, “um mês depois do recebimento de tais informações pelo órgão regulador, em digressão razoável”, segundo o ministro relator Benjamin Zymler.  

Com a inclusão do § 3º no art. 9º da IN nº 99/25, o TCU passou a exigir que o relatório de auditoria sobre operações com valores mobiliários realizadas por EFPC patrocinadas por entidades federais seja encaminhado previamente ao órgão de supervisão, coordenação e controle da entidade patrocinadora correspondente para a sua manifestação antes de ser submetido ao relator responsável pela fiscalização no TCU.

As conferências do TCU serão realizadas mediante amostragem, com seleção baseada nos critérios de relevância, materialidade e risco previstos no § 1º art. 9º da IN nº 99/25.

Diante disso, é possível afirmar que o normativo promove mudanças tanto procedimentais quanto materiais. No aspecto procedimental, a introdução de uma rotina de fiscalização (art. 9º) tende a reforçar o rigor a ser aplicado sobre a Previc e entidades federais patrocinadoras. Esse cenário pode se concretizar caso o TCU entenda que há falhas ou insuficiências no controle exercido pela Previc e demais estruturas de fiscalização. É provável que se intensifique a fiscalização no setor.

Já no aspecto material, apesar das salvaguardas que condicionam a atuação direta do TCU, como a exigência de autorização prévia do relator, visando torná-la excepcional, a norma adota um conceito jurídico indeterminado, pois a expressão nela utilizada – “excepcionalmente”” – não possui um conteúdo objetivo, dando margem para interpretações acerca dos limites dessa intervenção do TCU.

Recentemente, foi noticiada uma atuação direta do TCU na Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil-PREVI, sob o argumento de que as suas reservas teriam decrescido em R$ 14 bilhões no ano de 2024. O valor absoluto pode indicar uma excepcionalidade, contudo representa 5% dos R$ 240 bilhões de reservas totais em planos, o que não gera a necessidade de um plano de equacionamento de déficit. 

Para que esse modelo de fiscalização ocorra dentro de uma razoabilidade, será necessária sua concretização a partir de um juízo das grandezas e dos valores envolvidos, conforme exposto nos parágrafos do art. 9°, bem como de um juízo prévio, ainda que preliminar, sobre a atuação dos órgãos especializados. Esses padrões serão estruturados a partir de precedentes da própria Corte de Contas, ainda a serem construídos.

Nesse cenário, além de ser viável a condenação das EFPC em processos de Tomada de Contas Especial perante o Tribunal, alertamos, também, para a possibilidade de ocorrer eventual condenação dos dirigentes dos fundos de pensão a pagar o prejuízo solidariamente, visando o ressarcimento ao erário, e, em caso de não pagamento, sofrer execução fiscal. Os dirigentes podem suportar, ainda, a aplicação da multa prevista no art. 57 da Lei n° 8.443/1992, de até 100% do valor atualizado do dano causado ao erário. Há, inclusive, precedente do TCU nesse sentido, visto que, no Acórdão n° 2.402/2020, houve condenação ao pagamento dessa multa em desfavor dos diretores de EFPC.

No caso específico dos fundos de pensão, cabe mencionar a existência da Lei Complementar n° 109/2001, que dispõe sobre o Regime de Previdência Complementar e prevê penalidades próprias para os agentes atuantes nesse setor. Há, por exemplo, multas pecuniárias previstas no Decreto 4.942/2003, e o art. 65, III, dessa lei complementar estabelece, dentre outras penalidades, a inabilitação, pelo prazo de dois a dez anos, para o exercício de cargo ou função em entidades de previdência complementar, sociedades seguradoras, instituições financeiras e no serviço público. De todo modo, o TCU tem utilizado as penalidades constantes da Lei n° 8.443/1992 em detrimento daquelas previstas pela Lei Complementar n° 109/2001, como se observa no Acórdão n° 2.402/2020.

A tendência é de aplicação cumulada de penalidades aos dirigentes, podendo, inclusive, vir a ser replicada pelos Tribunais de Contas estaduais na análise de processos de Tomada de Contas Especial, colocando-se como uma tendência no cenário de controle e fiscalização das unidades ditas jurisdicionadas. 

Em suma, a versão aprovada da IN nº 99/25 apresenta distinções relevantes em relação à minuta proposta pelo GT em 2024, pois reflete um movimento de mitigação da postura fiscalizatória proativa do TCU, buscando evitar a total indiferença à atuação da Previc, dos patrocinadores e da SEST no setor. 

Ainda assim, o TCU mantém sua competência para fiscalizar de forma direta e exclusiva os investimentos realizados pelas EFPC com recursos oriundos de patrocinadores públicos federais, incluindo as contribuições individuais dos participantes dessas entidades. Esse cenário não necessariamente sinaliza a adoção de uma coordenação entre os agentes fiscalizadores, uma vez que não se consolidou uma relação de precedência fiscalizatória. No limite, a Previc pode entender determinado ato como regular e o TCU ter posição oposta.

O fato é que há uma sobrecarga fiscalizatória, que demanda maiores cuidados, sobretudo formais, por parte dos agentes da previdência complementar fechada.

As equipes de Direito Público e Direito Previdenciário do Bocater acompanham a evolução das posições do TCU a partir da edição da IN nº 99/25 e seus impactos no setor de previdência complementar fechada.

 


 

1- A primeira modalidade implicaria fiscalização direta e análise de mérito das operações, competindo precipuamente aos órgãos fiscalizadores. O controle de segunda ordem, a princípio, se limitaria a avaliar a atuação do órgão especializado. No entanto, permitiria que a Corte de Contas determinasse providências ao órgão supervisor/fiscalizador, caso entendesse que a sua atuação tivesse sido deficiente ou omissa.

2- No caso analisado pelo TCU, no bojo do Acórdão nº 600/2025-Plenário, mencionou-se que as circunstâncias excepcionais seriam a identificação de graves irregularidades e a relevância dos valores envolvidos, in verbis: “[…] embora o controle de segunda ordem seja a regra para o TCU em casos semelhantes, circunstâncias excepcionais, como a identificação de graves irregularidades e a relevância dos valores envolvidos (no caso, um valor histórico de R$ 1,08 bilhão), demandam atuação direta, o que justifica o prosseguimento dos autos”. (Grifou-se).

3- A irretroatividade de nova orientação geral para anular deliberações administrativas foi, inclusive, inserida na LINDB, nos seguintes termos: “Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público”.

 

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