Foi publicada, em edição extra do Diário Oficial da União (DOU) de 20 de setembro de 2019, a Lei nº 13.874 (Lei da Liberdade Econômica), fruto da conversão em lei da Medida Provisória nº 881/2019 (MP 881/2019), sobre a qual discorremos em nossa newsletter de abril (n° 122).
Ao editar a MP 881/2019, a intenção do Governo Federal foi a de promover, por meio de alterações legislativas nas áreas de direito civil, empresarial, econômico, tributário, urbanístico e do trabalho, a racionalização da atuação regulatória e a garantia de livre mercado.
Abordaremos aqui as principais mudanças trazidas pela Lei nº 13.874/19 em comparação ao texto original da MP 881/2019, em relação ao direito societário, civil e regulatório.
Capítulo I
Com relação ao Capítulo I (Disposições Gerais), destaca-se a alteração da redação do §1° do art. 1° da MP para excluir a previsão de aplicação da Lei nº 13.874/19 à ordenação pública sobre a produção e consumo. Provavelmente, a opção do legislador foi feita para não restringir ou flexibilizar as normas de proteção ao consumidor.
Destaca-se que o texto final da lei não promoveu alteração expressa ao Código de Defesa do Consumidor e, quando tratou de tema consumerista, o fez para ressalvar a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 3°[1] aos direitos do consumidor (art. 3°, §3°, II)[2].
Por outro lado, o âmbito de incidência da lei foi ampliado para aplicar-se à ordenação pública do comércio, registros públicos, trânsito e transporte. Com relação a registros públicos, percebe-se o intuito de promover a desburocratização e a simplificação de escrituração e publicação de atos, permitindo-se inclusive a utilização de meios eletrônicos[3].
Na esteira da desburocratização, a Lei da Liberdade Econômica determina que os documentos digitais, para todos os efeitos legais e comprovação de qualquer direito público, têm o mesmo valor probatório do documento físico original e o mesmo efeito jurídico do documento microfilmado, autorizando o armazenamento e arquivamento em formato digital de documentos privados, os quais poderão ser destruídos quando atingidos os respectivos prazos de prescrição e decadência[4].
Mencione-se a inclusão da nova disposição ao §2° do art. 1°, segundo o qual as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas se interpretam em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade.
O texto original da MP foi alterado para inclusão de um novo princípio, reconhecendo-se a vulnerabilidade do particular perante o Estado no inciso IV do art. 2° da lei. O parágrafo único de tal artigo, fruto dos debates no Congresso Nacional, prevê que ato normativo regulamentar a ser editado deverá dispor sobre critérios para afastamento do referido princípio, limitados a questões de má-fé, hipersuficiência ou reincidência.
Capítulo II
O Capítulo II da lei trata da declaração de direitos de liberdade econômica e enuncia um rol de direitos essenciais das pessoas naturais e jurídicas voltados ao desenvolvimento econômico do País.
Implementando uma das diretrizes norteadoras da edição da lei, o artigo 3º, inciso I, estabelece que as atividades econômicas de baixo risco poderão ser desenvolvidas sem a necessidade de atos públicos de liberação da respectiva atividade. Ficou delegada à regulamentação a necessidade de classificar atividades de baixo risco, que deverá ser desempenhada pelo Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, e, não existindo o referido ato do Poder Executivo federal, deverá ser aplicada a resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM).
Dentre as modificações ao texto da MP, destacamos a alteração do inciso VIII do art. 3°, limitando a sua aplicação aos negócios jurídicos paritários. Uma das críticas feitas ao texto original dizia respeito à ausência de diferenciação entre contratos paritários e contratos de adesão – estes últimos regem muitos dos contratos celebrados pelos pequenos empresários. Com a nova redação, houve o reconhecimento dessa diferenciação, além da exclusão do trecho que limitava a aplicação de normas de ordem pública para beneficiar a parte que pactuou contra tais normas.
Cabe mencionar a inclusão de dois dispositivos no art. 3° (incisos XI e XII), que evidenciam o direito essencial dos administrados de não serem submetidos a exigências de (a) “medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico”, ressalvadas situações de acordo resultantes de ilicitude (art. 3°, §10), e (b) apresentação de “certidão sem previsão expressa em lei”. Em linha com as disposições previstas na MP nº 881/2019, a lei ampliou o rol dos direitos essenciais, endereçando as reclamações de empresários e profissionais quanto à morosidade e a exigências abusivas em procedimentos administrativos que tramitam em muitos dos entes e órgãos da administração pública.
Capítulo IV: alterações no Código Civil
Com relação às alterações promovidas no Código Civil, foi introduzido (art. 7° da lei) o art. 49-A para reforçar a autonomia da personalidade jurídica, dispondo expressamente que se trata de um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, com a finalidade de estimular a economia e o desenvolvimento do País.
Na MP 881/2019 era previsto[5] o elemento doloso ou intencional na prática da lesão ao direito de outrem ou de atos ilícitos para configuração do desvio de finalidade e consequente aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Na conversão da lei, esse elemento foi suprimido.
Destaca-se ainda, também pelo art. 7º da lei, a alteração do art. 113 do Código Civil, que dispõe sobre a interpretação dos negócios jurídicos. O novo §1° do dispositivo dispõe sobre parâmetros interpretativos dos negócios jurídicos[6], e o §2°, reforçando a autonomia de vontade dos pactuantes, prevê que “as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei”.
Merece menção a inclusão do art. 421-A ao Código Civil, estabelecendo que “os contratos civis e empresariais se presumem paritários e simétricos até que neles sejam encontrados elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais”. Os incisos I a III do novo texto estabelecem as seguintes garantias: (a) possibilidade de as partes negociantes estabelecerem parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (b) a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (c) a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
A nova redação dada ao art. 113 e a inclusão do art. 421-A ao Código Civil acabaram reunindo as alterações e inclusões inicialmente previstas na MP 881/2019 com relação aos arts. 423, 480-A e 480-B, sendo que estes últimos não permaneceram na lei sancionada.
No que se refere ao mercado de capitais, a Lei da Liberdade Econômica inovou em relação à MP ao prever novas disposições aos arts. 1.368-C, 1.368-D e 1.368-E, além de incluir o art. 1.368-F no Código Civil[7]. Embora siga a disciplina do art. 3º da Instrução CVM nº 555 (“comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinada à aplicação financeira”), o Código Civil passa a dispor que o fundo de investimento constitui condomínio de natureza especial, para o qual ressalva a aplicação das disposições do condomínio geral, condomínio edilício e condomínio de lotes (disciplinados nos arts. 1.314 ao 1.358-A do Código Civil).
Além disso, prevê que “o registro dos regulamentos dos fundos de investimentos na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponibilidade de efeitos em relação a terceiros”[8]. Resta saber como a CVM irá, no exercício do seu poder regulamentar, disciplinar tal registro, em especial, diante da atual redação do art. 8°, inciso III, da Instrução CVM 555/2014[9], e do art. 2°, inciso I, da Instrução CVM 578/2016[10].
Ainda com relação aos fundos de investimentos, a nova legislação prevê que o regulamento poderá estabelecer “classes de cotas com direitos e obrigações distintos, com possibilidade de constituir patrimônio segregado para cada classe”, o qual responderá apenas “por obrigações vinculadas à classe respectiva”[11].
Sobre a limitação de responsabilidade dos “prestadores de serviços fiduciários” dos fundos de investimentos, a Lei nº 13.874/2019 dispõe que o regulamento poderá estabelecer parâmetros para aferição da responsabilidade de tais agentes perante o condomínio e entre si (inciso II do art. 1.368-D). Além disso, “a avaliação de responsabilidade dos prestadores de serviço deverá levar sempre em consideração os riscos inerentes às aplicações nos mercados de atuação do fundo de investimento e a natureza de obrigação de meio de seus serviços” (§2° do art. 1.368-D).
Cabe mencionar a nova redação conferida ao art. 1.368-E, segundo o qual “os fundos de investimento respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, e os prestadores de serviço não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou má-fé”. Ressalte-se a aplicação das regras de insolvência previstas nos arts. 955 a 965 do Código Civil, caso o fundo de investimento com limitação de responsabilidade não possua patrimônio suficiente para responder por suas dívidas (§1° do art. 1.368-E), podendo a insolvência ser requerida judicialmente por credores, por deliberação própria dos cotistas do fundo de investimento ou pela CVM (§2° do art. 1.368-E).
Como dito, a lei inovou para dispor que fundos de investimento constituídos por lei específica e regulamentados pela CVM deverão, no que couber, seguir as disposições do Capítulo X do Código Civil[12].
Capítulo IV: alterações na Lei das S.A.
Com relação à Lei das Sociedades Anônimas (Lei das S.A.), a Lei da Liberdade Econômica não manteve dispositivo que dava à CVM atribuição para, em regulamentação própria, dispensar exigências previstas na Lei das S.A. para companhias definidas como de pequeno e médio portes, o que poderia facilitar o acesso dessas sociedades ao mercado de capitais[13].
Capítulo IV: legislação de recuperação e falência
No tocante à legislação de recuperação e falência, não foi mantido o dispositivo (art. 9º da MP) que alteraria a Lei nº 11.101/2005, para dispor que a extensão dos efeitos da falência somente seria admitida quando estivessem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica de que tratam o art. 50 do Código Civil.
Conclusão e vigência
Apesar das supressões e inclusões ocorridas durante o trâmite legislativo da MP, a Lei de Liberdade Econômica manteve a essência do texto e continua na anunciada direção de desenvolver a economia, com fomento às atividades do mercado de capitais, incentivando a utilização dos mecanismos de mercado para a capitalização das companhias abertas.
Com relação à vigência, o inciso II do art. 20 dispõe que a norma entra em vigor “na data da sua publicação [20 de setembro de 2019], para os demais artigos”. Porém, com o veto ao inciso I, que tratava do período de 90 dias para entrada em vigor dos dispositivos da Lei nº 13.874 que alteravam outros diplomas legislativos[14], a parte final do inciso II ficou sem sentido. Na mensagem de veto da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Secretaria-Geral da Presidência da República, determinou-se que “deve prevalecer a norma do inciso II do art. 20, que estabelece a vigência imediata do projeto de lei, na data de sua publicação”[15]. Assim, todo o texto da Lei de Liberdade Econômica entrou em vigor no último dia 20 de setembro, data em que foi publicada.
Tendo em vista a extensão e a complexidade do texto da Lei nº 13.874/2019, estas são breves considerações jurídicas sobre matérias tidas como relevantes, sem prejuízo de outras tantas que merecem estudo mais aprofundado. As equipes do escritório colocam-se à disposição para esclarecimentos de eventuais dúvidas sobre o tema.
Luiza Rangel de Moraes é sócia de Bocater Advogados (lrangel@bocater.com.br).
Maurício Gobbi dos Santos é advogado de Bocater Advogados (msantos@bocater.com.br).
[1] “Art. 3° São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (…)
III – definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda;”
[2] “Art. 3° (…)
- 3º O disposto no inciso III do caput deste artigo não se aplica: (…)
II – à legislação de defesa da concorrência, aos direitos do consumidor e às demais disposições protegidas por lei federal.”
[3] Os arts. 12 e 14 alteraram, respectivamente, a Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973) e a Lei de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins (Lei nº 8.934/1994).
[4] Art. 2º-A da Lei nº 12.682/2012, introduzido pelo art. 10 da Lei nº 13.874/2019.
[5] Art. 7° da MP, no que se referia à alteração do §1° do art. 50 do Código Civil.
[6] Dispõe que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (b) corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (c) corresponder à boa-fé; (d) for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (e) corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.
[8] Cf. nova redação do art. 1.368-C e respectivos parágrafos do Código Civil.
[9] “Art. 8º O pedido de registro deve ser instruído com os seguintes documentos e informações: (…) III – os dados relativos ao registro do regulamento em cartório de títulos e documentos; (…)”
[10] “Art. 2º O funcionamento do fundo depende de prévio registro na CVM, o qual será automaticamente concedido mediante o protocolo na CVM dos seguintes documentos e informações: I – ato de constituição e inteiro teor de seu regulamento, elaborado de acordo com as disposições desta Instrução, acompanhados de certidão comprobatória de seu registro em cartório de títulos e documentos; (…)”
[11] Novo art. 1.368-D, “caput” e §3° do Código Civil.
[12] Novo art. 1.368-F do Código Civil.
[13] Originalmente previsto no art. 8° da MP 881, que incluiria o novo art. 294-A na Lei 6.404/76, com a seguinte redação: “Art. 294-A. A Comissão de Valores Mobiliários, por meio de regulamento, poderá dispensar exigências previstas nesta Lei, para companhias que definir como de pequeno e médio porte, de forma a facilitar o acesso ao mercado de capitais.”
[14] Inciso I do art. 20: “I – após decorridos 90 (noventa) dias da data de sua publicação oficial, quanto ao disposto nos arts. 6º ao 19;”
[15] Razões do veto: “A propositura legislativa, ao estabelecer o prazo de noventa dias para a entrada em vigor dos arts. 6º ao 19 do projeto de lei, contraria o interesse público por prorrogar em demasia a vigência de normas que já estão surtindo efeitos práticos na modernização do registro público de empresas, simplificação dos procedimentos e adoção de soluções tecnológicas para a redução da complexidade, fragmentação e duplicidade de informações, entre outros. Nestes termos, deve prevalecer a norma do inciso II do art. 20, que estabelece a vigência imediata do projeto de lei, na data de sua publicação.”