Na sessão ordinária do dia 26 de outubro, o Tribunal de Contas da União (TCU) realizou o julgamento da Tomada de Contas (TC) nº 042.775/2021-3, de relatoria do ministro Walton Alencar, que resultou na publicação do Acórdão nº 2379/2022, cujo objeto é o processo de desestatização do sistema rodoviário do Estado do Paraná, conhecido como “Concessão PR Vias”. Composta por um conjunto de rodovias federais e estaduais, divididas em seis lotes, a concessão é conduzida pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Além de rodovias estaduais e federais, os lotes da Concessão PR Vias também incluem trechos rodoviários que estavam sob administração de concessões anteriores e dos que eram operados pelo Departamento de Estradas de Rodagem do Paraná (DER/PR) e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Esse sistema rodoviário interliga o Porto de Paranaguá, maior porto exportador de produção agrícola do país, à região metropolitana de Curitiba, composta por 29 municípios e mais de 3,5 milhões de habitantes, às regiões norte e oeste do Paraná e à Ponte da Amizade, fronteira do Brasil com o Paraguai.
A concessão, portanto, envolve as principais rodovias paranaenses, nas quais há um fluxo elevado de veículos e pontos com intensa presença de caminhões, o que faz com que sejam necessárias constantes intervenções para manutenção, ampliação de sua capacidade e melhorias. Há, ainda, demanda por um complexo sistema operacional para garantia da segurança e trafegabilidade dos usuários, considerando que as rodovias percorrem algumas regiões densamente urbanizadas e trechos de serra.
Nesse sentido, a Concessão PR Vias tem como objetivo a modernização das vias para garantir uma logística eficiente por meio da integração da malha, redução de custos de transporte e ampliação da capacidade das vias. Busca-se, também, ampliar as oportunidades de investimento e de emprego e estimular o desenvolvimento tecnológico e industrial do Brasil. Para atingir os objetivos, o projeto prevê, no prazo de 30 anos, para os seis lotes, investimentos de R$ 44,3 bilhões e R$ 31,9 bilhões em custos e despesas, conforme plano de outorga.
Os trechos rodoviários a serem concedidos se inserem em um contexto anterior ao atual processo de desestatização, o que merece ser destacado. Isso porque a Lei nº 9.277/96[1] autorizou a União a delegar a estados e municípios a administração e exploração de rodovias e portos federais, e, com isso, foram firmados diversos convênios, cujos objetos eram a delegação por parte da União ao Paraná das rodovias federais que comporiam os seis lotes que foram licitados pelo Estado no ano de 1996 e concedidos à inciativa privada em 1997.
A delegação da prestação de serviços públicos a entes privados é fundamentada na expectativa de que esses tenham condições de realizá-los com maior eficiência. Nesse contexto, o monopólio natural característico desses serviços traz a necessidade de regulação para impedir que os seus prestadores se apropriem dos ganhos de eficiência em detrimento dos usuários.
O que se observa no setor rodoviário brasileiro, é que, apesar de serem constatados avanços incrementais, o poder concedente não conseguiu conciliar esses interesses nas contratações realizadas na década de 90 (primeira etapa), assim como nas realizadas entre 2008 e 2009 (segunda etapa) e entre 2014 e 2015 (terceira etapa)[2]. Nesse contexto, a Concessão PR Vias se destaca por marcar uma sucessão de modelos de concessão no Brasil.
Os contratos firmados pelo Paraná com as licitantes vencedoras tinham duração de vinte e quatro anos, e, apesar de terem se esgotado em novembro de 2021, apenas uma pequena parte das obras previstas foram finalizadas. Nesse cenário, realizaram-se diversos aditivos contratuais que acabaram por desfigurar a natureza dos objetos inicialmente licitados. Desse modo, as expectativas com as concessões não se concretizaram, pois o Anel de Integração do Paraná não se converteu em vias expressas e as principais obras de ampliação de capacidade previstas não foram entregues.
Por conta do insucesso das contratações em atender as expectativas que nortearam a desestatização, as necessidades por obras de ampliação de capacidade e de melhorias foram se acumulando ao longo de mais de duas décadas, o que demandará intervenções significativas das futuras concessionárias.
O histórico desses trechos rodoviários deve ser resgatado na análise dos novos estudos apresentados, objetivando evitar que os usuários sejam penalizados por mais algumas décadas com altas tarifas de pedágio e intervenções insuficientes para prover a segurança e qualidade dos trechos concedidos. Os riscos envolvidos nessa nova empreitada precisam ser mitigados pelo poder concedente a fim de garantir que os serviços sejam de fato entregues à população, resolvendo um dos principais gargalos da infraestrutura rodoviária nacional. Para tanto, nos contratos do atual processo de concessão, o poder concedente, com o intuito de enfrentar tais problemas e suceder os modelos de concessão anteriores, inovou, por exemplo, trazendo o mecanismo denominado de reclassificação tarifária.
Análise do TCU
Essa breve contextualização mostrou-se necessária para compreender a fiscalização do TCU no âmbito da Tomada de Contas ora analisada, uma vez que se identificou o risco de ocorrer a mesma quebra de expectativa na Concessão PR Vias. Em síntese, o que se pretendeu foi abordar os desafios identificados anteriormente, dentre eles, o nível tarifário a ser praticado, as obras remanescentes de contratos anteriores, a classe das rodovias e os mecanismos de incentivos para a implantação das obras de ampliação de capacidade e melhorias.
Nesta etapa, por meio do Acórdão nº 2379/2022, foram analisados apenas os lotes um e dois da concessão, cujo exame abarcou os estudos de viabilidade técnica e econômica e ambiental (EVTEA), o contrato e seus anexos, bem como os demais documentos pertinentes, tendo sido avaliados, também, os aspectos regulatórios e a capacidade de implementação dos dispositivos contratuais pelo regulador[3]. O exame preliminar que apontou os riscos associados à metodologia proposta pela ANTT foi realizado pela Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura Rodoviária e de Aviação Civil (SeinfraRodovia), unidade técnica do TCU responsável pela fiscalização.
Em relação aos níveis tarifários, a avaliação das tarifas de pedágio das concessões encerradas em 2021 possibilitou concluir que, em média, as tarifas praticadas nas concessões paranaenses representavam mais que o dobro das vigentes nas demais concessões de rodovias federais. Por esta razão, o relator recomendou que a ANTT reapresente o projeto à sociedade paranaense, para que esta tome ciência dos novos patamares tarifários e das alterações efetuadas ao longo da fiscalização pela Corte de Contas.
A respeito das Informações Cadastrais das Rodovias, destacou-se ser necessário que a situação dos ativos seja atualizada, tanto para possibilitar que as concessionárias interessadas no trecho tenham ciência da efetiva situação em que se encontram, como para a segurança da Administração quanto ao que está sendo repassado para a iniciativa privada, tendo sido determinado à ANTT que atualize as informações cadastrais das rodovias a serem licitadas.
Também foi recomendado à Agência que, nos próximos projetos de concessão, realize ou contrate estudos que associem diferentes perfis de rodovias aos respectivos custos generalizados de transporte, comparando economicamente os custos decorrentes das alternativas de investimentos e os suportados pelos usuários, como meio de subsidiar o EVTEA e as decisões do gestor em projetos de concessão rodoviária.
Quanto à análise do contrato e seus anexos, foram encontradas inconsistências e oportunidades de melhoria, devendo ser corrigidas pela ANTT antes do lançamento do certame licitatório.
Ressalta-se que a concessão em análise reproduz ferramentas regulatórias analisadas pelo TCU no âmbito de recentes processos de desestatização em diversos Acórdãos[4]. Dentre elas, destaca-se: (i) mecanismo de proteção cambial; (ii) maior detalhamento das regras para extinção antecipada; (iii) possibilidade de pactuação de acordo tripartite (concessionária, poder concedente e financiador); (iv) recursos vinculados; (v) desconto de usuário frequente; (vi) reclassificação tarifária; (vii) presença de Organismo de Inspeção Acreditado (verificador) para a avaliação da conformidade dos serviços prestados pela concessionária; e, (viii) a possibilidade de utilização do dispute board para a resolução de conflito.
Após a análise da unidade técnica, não foi identificado nenhum conflito entre as cláusulas constantes na minuta contratual e as decisões anteriores do Tribunal. Entretanto, identificou-se ainda restarem ausentes algumas regulamentações, o que pode impactar na eficácia de cláusulas contratuais.
Nesse sentido, a SeinfraRodovia destacou que houve uma redução dos eventos assegurados pela Garantia de Execução Contratual, que passou a ser utilizada apenas quando a concessionária não efetuar o pagamento de indenização pelos danos causados ao usuário. Também foi retirada a cláusula que possibilitava a execução da garantia contratual caso a concessionária não realize as obrigações de investimentos previstas ou as execute em desconformidade com o estabelecido, pois estariam reguladas pela Resolução nº 2.555/2008 da ANTT[5].
Reformulação de resoluções
As resoluções da Agência estão sendo reformuladas e substituídas pelos regulamentos das concessões rodoviárias (RCRs). A minuta do RCR 3, que trata da gestão econômico-financeira dos contratos de concessão, não abrange o evento “inexecução do contrato”[6]. Logo, essa modelagem fragilizava a possibilidade de execução de garantias, além de diminuir a conectividade do contrato.
Em sede de memoriais, a Agência informou que realizou a alteração na redação da subcláusula 11.6.1, que passa a prever que, sem prejuízo das demais hipóteses previstas no contrato e na regulamentação vigente, a Garantia de Execução do Contrato. Esta poderá ser utilizada quando a Concessionária não realizar as obrigações de investimentos previstas ou quando executá-las em desconformidade com o estabelecido no Contrato, causando danos ao Poder Concedente, cujos valores e procedimentos serão apurados conforme regulamento da ANTT. Não obstante, essa alteração trouxe novos problemas, o que foi destacado pelo ministro relator, uma vez que os procedimentos para a apuração desse valor ainda não foram regulamentados pela Agência.
Desse modo, foi reconhecido que a mudança na modelagem contratual proposta pela ANTT busca melhor delimitar o acionamento das garantias e permitir a estimativa dos danos de forma concreta, mas ainda apresenta lacunas e riscos. Por conta disso, foi recomendado à Agência que finalize a regulamentação necessária para a efetiva aplicação da subcláusula 11.6.1 antes da licitação da PR Vias, em nome da segurança jurídica.
A SeinfraRodovia também destacou que, dentre as determinações proferidas em decisões anteriores[7], a ausência de regulamentação específica para a Building Information Modeling (BIM) também não foi endereçada pela ANTT. Havia sido determinado o estabelecimento dos procedimentos para a utilização do BIM a ser desenvolvido pelas concessionárias de infraestrutura rodoviária federal, à luz do disposto nos Decretos nº 9.983/2019 e nº 10.306/2020. A unidade técnica reforçou que há preocupação a respeito de como os dados da concessão serão captados e geridos.
Por fim, em relação à reclassificação tarifária, a maior parte das receitas totais de pedágio previstas advêm das praças de pedágio em que haverá menor incidência dessa, visto que os maiores tráfegos previstos estão justamente em trechos que já se encontram duplicados. Desse modo, há o risco de que haja preferência na execução de trechos menores situados em áreas com tráfego maior.
A ANTT argumentou que a reclassificação tarifária gera incentivos robustos mesmo em trechos cobertos por praças com menor nível arrecadatório, criando incentivos financeiros para a execução das obras de duplicação, além de proporcionar maior legitimidade ao usuário por meio da convergência entre tarifa paga e o valor percebido pelo usuário dos serviços ofertados pela concessionária.
Quanto à ausência de incentivos para as demais obras de ampliação de capacidade e de melhorias, alegou que as cláusulas contratuais exigem a execução desses investimentos para que os trechos duplicados sejam elegíveis à reclassificação tarifária.
Apesar das alegações da ANTT, a unidade técnica do TCU informou que tais dispositivos não foram identificados. A subcláusula 19.4.5 da minuta do contrato preceitua que a exigência de execução de obras de melhoria para a reclassificação tributária só ocorre diante da impossibilidade de conclusão integral das obras de duplicação em determinado trecho homogêneo.
A SeinfraRodovia também informou que existem outras metodologias capazes de aprimorar o incentivo dado pela reclassificação tarifária. Com isso, o ministro relator recomendou à ANTT que: (i) revise os mecanismos de incentivo à execução das obras de duplicação dos lotes um e dois das Rodovias do Paraná, a fim de conferir maior grau de equalização aos incentivos financeiros associados à aplicação da reclassificação tarifária para as obras de duplicação relacionadas a diferentes praças de pedágio; e (ii) estabeleça mecanismos regulatórios relacionados à execução das demais obras de ampliação de capacidade e de melhorias aptas a impactar a rentabilidade da concessionária, objetivando incentivar sua execução de forma mais efetiva.
Em suas considerações finais, o ministro relator apontou que a Concessão PR Vias possui uma modelagem que, diante de recorrentes insucessos na realização de investimentos tão necessários à infraestrutura do País, propõe novas soluções sem perder de vista o necessário equilíbrio com a modicidade tarifária.
A partir da análise desempenhada pela unidade técnica do Tribunal, a decisão do relator demonstrou que as minutas contratuais dos lotes analisados ainda não estão maduras o suficiente, o que pode, em última instância, gerar pleitos de reequilíbrio ao longo da execução contratual.
Em razão disso, foi feita uma série de recomendações à ANTT em relação aos lotes um e dois, como as citadas anteriormente, quem dizem respeito a atualização cadastral das rodovias e a reapresentação do projeto à sociedade paranaense.
Além destas, também pode citar-se: (i) o estabelecimento, de modo claro e preciso, na minuta contratual, sobre o tratamento a ser dado para obras de terceiros supervenientes; (ii) a definição do conceito de “obras do poder concedente e do DER” e “obras executadas pelo poder concedente e DER com recursos de terceiros”; (iii) a revisão dos mecanismos de incentivo à execução das obras de duplicação dos lotes analisados; (iv) mecanismos e critérios para assegurar a isenção e imparcialidade do Verificador Acreditado, bem como os requisitos a configurar o rigor técnico das aferições; e, (v) previsão contratual da compatibilidade entre a taxa utilizada para atualizar a verba relativa a desapropriações e aquela utilizada para atualização dos valores efetivamente gastos com tais ações.
Todo o esforço desempenhado na busca de melhores soluções para a infraestrutura do Brasil não está livre de riscos e indefinições. Nesse sentido, o TCU, a despeito de críticas de parte do setor acadêmico, vem desempenhando o papel fundamental de acompanhar não só os processos de novas concessões, como também as ações regulatórias e fiscalizatórias da ANTT.
A equipe de Direito Público do Bocater, Camargo, Costa e Silva e Rodrigues, Advogados continuará acompanhando os desdobramentos desse tema de extrema relevância e impacto para o mundo jurídico.
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