No último dia 22 de setembro, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) enviou para análise do Tribunal de Contas da União (TCU) os estudos técnicos relativos à relicitação dos trechos BR 262/MG (Rota do Zebu) e BR-153/262/GO/MG (Rota do Sertaneja), integrantes da BR 060/153/262/DF/GO/MG, originalmente concedida à Concessionária de Rodovias Centrais do Brasil S.A (Concebra)[1].
A empresa protocolou o pedido de relicitação em abril de 2020, que resultou na qualificação do trecho no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) e inclusão no Programa Nacional de Desestatização (PND) por meio da Resolução CPPI nº 191, de 25 de agosto de 2021[2]. Segundo a empresa, uma das razões para o pedido foi o fato de o governo federal não ter cumprido com um acordo de financiamento celebrado na época da concessão.
O tema das recentes desestatizações de rodovias já foi objeto de Newsletter da equipe de Direito Público do Bocater Advogados. Na notícia, abordou-se a importância do acompanhamento pelo TCU dos projetos de novas concessões e das ações regulatórias e fiscalizatórias da ANTT, à luz do processo de desestatização do sistema rodoviário do estado do Paraná, conhecido como “Concessão PR Vias”. No entanto, a concessão da PR Vias não se deu no bojo de uma relicitação, ou seja, não houve a devolução do ativo pelas concessionárias que operavam tais rodovias, como no presente caso.
Apesar dessa distinção, ambos os cenários desembocam na necessária análise dos estudos técnicos pelo TCU. Nas relicitações, por força do artigo 11 da Lei de Relicitação (Lei federal nº 13.448/2017), e nas demais, por força do artigo 18, inciso VII da Lei federal nº 9.491/97. A atuação da Cortes de Contas, nesses casos, é regulada pela Instrução Normativa TCU nº 81/2018 (IN 81)[3].
Os documentos enviados ao TCU foram objeto das Audiências Públicas n° 12/2022 e 14/2022, realizadas pela ANTT em dezembro de 2022 e aprovadas em 14 de setembro deste ano. Apesar de fazerem parte do mesmo sistema rodoviário, os estudos técnicos relativos à relicitação da BR 060/153/262/DF/GO/MG, elaborados pela Infra S.A., levaram à decisão de subdividir o projeto em três trechos, cada um a ser submetido a um leilão distinto: Rota do Zebu (BR 262/MG), Rota do Sertaneja (BR-153/262/GO/MG), além do trecho BR-153/060, que ainda está em fases de estudos.
As minutas de contratos de concessão submetidos ao TCU relativos à Rota do Zebu e Rota do Sertaneja preveem, dentre outras obrigações, a necessidade de realização de diversas obras descritas no Programa de Exploração de Rodovia, as quais incluem melhorias, ampliação de capacidade, recuperação e manutenção das rodovias. Possibilitam, ainda, a implantação de sistema Free Flow[4], por determinação da ANTT ou proposta da concessionária, a ser incluído no contrato por aditivo.
Além desses pontos, outros três que merecem maiores destaques:
a) O contrato prevê o sistema de “Mecanismo de Contas”, que visa a prevenção de possíveis inadimplências, com o objetivo de assegurar a sustentabilidade econômico-financeira do instrumento. Esse mecanismo consiste na reunião das contas previstas no contrato. Toda a receita bruta advinda da concessão será depositada na conta centralizadora, que será movimentada pelo Banco Depositário – responsável por realizar a transferência dos recursos vinculados[5] para a conta da concessão e efetuar o pagamento da Verba de Fiscalização à ANTT. O restante será transferido para uma conta de livre movimentação, a ser administrada pela própria concessionária.
A minuta de edital prevê que a vencedora dos leilões será a proponente que apresentar lance com o maior desconto sobre a tarifa básica de pedágio. Além disso, o edital prevê que a Proposta Econômica deverá considerar a obrigação de depositar, a título de recursos vinculados adicionais na conta de aporte[6], valores discriminados em tabela disposta no edital. Esse depósito é condição para assinatura do contrato. Posteriormente, os valores serão transferidos à conta de ajuste, destinada ao ajuste final de resultados[7], desconto de usuário frequente, e reequilíbrios econômico-financeiros.
O atual desenho de Mecanismo de Contas proposto nesses contratos reduz o risco de não aprovação da modelagem pelo TCU, visto que previu que somente as receitas brutas advindas da própria exploração serão depositadas na conta vinculada, em alinhamento ao defendido pelo Tribunal[8]. A Corte de Contas entende que “não há óbices para que receitas advindas da exploração da concessão sejam depositadas em contas vinculadas para garantir o cumprimento de obrigações do concessionário. Todavia, não existe respaldo jurídico para que valores, devidos pela outorga, sejam destinados, por contrato, para conta vinculada, em vez de serem recolhidos à conta única do Tesouro. Tal poderia estar a ocorrer ao arrepio de normas e princípios de Direito Financeiro.”.
Ainda, em outro julgado[9], o TCU também não se opôs à ideia de que os recursos gerados pela concessão fossem depositados em uma conta vinculada, no entanto, novamente considerou inviável utilizar valores de receita orçamentária ao cumprimento das obrigações contratuais, visto que “por possuírem natureza pública, essas receitas têm que ser, necessariamente, depositadas no Caixa Único do Tesouro, em obediência ao princípio da unidade de tesouraria, consagrado no art. 56 da Lei 4.320/1964, que estabelece que todas as receitas devem ser recolhidas à conta única, vedada a fragmentação em caixas especiais”. No entanto, questiona-se qual será o posicionamento da Corte para o desembolso do valor de aporte de recursos vinculados.
b) O contrato permite a constituição de Comitê de Prevenção e Resolução de Disputas (dispute board) como mecanismo de resolução de controvérsias, gestão contratual e mitigação de risco, de modo a prevenir e solucionar divergências de natureza técnica ou econômico-financeira, nos termos do art. 23-A da Lei federal nº 8.987/95 e do art. 151 da Lei federal nº 14.133/21. A inclusão do dispute board, conforme estipulado no contrato em questão, é opcional para ambas as partes e será estabelecido de forma ad hoc, podendo o comitê somente emitir posicionamentos de caráter recomendatório[10]. Esse mecanismo já foi objeto de análise pelo TCU que, em recente julgado, determinou a priorização da regulamentação do Dispute Board nas concessões rodoviárias[11]. A ANTT está em processo de publicação de resolução sobre o tema, tendo realizado Audiência Pública no final de agosto, o que minimiza que o assunto seja uma barreira nos casos em comento.
c) O contrato prevê o estabelecimento de práticas de Environmental, Social and Governance (ESG)[12] que abranjam um conjunto de condutas voltadas à preservação do meio ambiente, responsabilidade com a sociedade e transparência empresarial. Esta previsão está alinhada com as práticas internacionais e, no Brasil, com a Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei Federal nº 14.133/21) que dispõe, por exemplo, sobre a necessidade de as licitantes informarem os impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras (art. 18, §1º, XII), bem como a possibilidade de a Administração exigir de seus contratados a adoção de programas de integridade (art. 25, §4º). No caso concreto, caso a concessionária decida por não observar determinada conduta, deverá explicar de maneira fundamentada, clara, precisa e congruente o porquê (pratique-ou-explique).
Após a análise e aprovação pelo TCU, a ANTT publicará o edital de licitação. A previsão é de que isto ocorra no 1º trimestre de 2024, iniciando-se, assim, o processo licitatório. O leilão está previsto para o 2° trimestre do mesmo ano e, por fim, a assinatura do contrato de concessão é prevista para o trimestre seguinte.
Enquanto o contrato não for assinado, a Concebra seguirá administrando a via e prestando os serviços de recuperação e manutenção, no entanto, visto que se trata de relicitação, em moldes distintos ao originalmente pactuado, cumprirá apenas com investimentos necessários listados seu termo aditivo (cláusula 4.1), ficando suspensos todos os demais.
A equipe de Direito Público do Bocater Advogados continuará acompanhando a temática e está à disposição para maiores esclarecimentos.