O Tribunal de Contas da União (TCU), em sessão realizada no último dia 25 de outubro, deferiu, por unanimidade, o pedido de liminar formulado por órgão integrante do Corpo Instrutivo, AudBancos – Unidade de Auditoria Especializada em Bancos Públicos e Reguladores Financeiros.
A AudBancos requereu que fosse vedada a discussão de proposta para a suspensão temporária dos aportes extraordinários para financiamento de déficits dos planos de benefícios geridos pelas entidades fechadas de previdência complementar (EFPC).
Segundo a entidade, a suspensão das contribuições extraordinárias representaria “risco iminente para as EFPC de patrocínio público”, em oposição às conclusões apresentadas pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) ao Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC).
A nosso ver, essa recente decisão se insere em um contexto no qual o TCU parece estar assumindo competências que, por força de lei complementar à Constituição Federal, estão a cargo da Previc e do CNPC. Em que pese a nítida preocupação do Tribunal com a higidez dos planos de benefícios complementares patrocinados por entes estatais federais, a competência legal e a expertise no tema estão alocadas na Previc e no CNPC.
Pudemos tratar, em artigo recentemente publicado, da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), do dia 2 de outubro, em que o ministro Cristiano Zanin, de forma monocrática, indeferiu pedido cautelar do Sindicato Nacional das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Sindapp) para que a Corte Suprema afastasse a fiscalização direta do TCU sobre as EFPC que possuem patrocinadores estatais federais (MS 37.802-DF).
A decisão judicial se baseou em dois argumentos centrais: (i) os arts. 70 e 71 da Constituição Federal, que determinariam uma competência do TCU sobre o “dinheiro público” repassado a pessoas jurídicas privadas, no caso, para os fundos de pensão; e (ii) o art. 25 da Lei Complementar nº 108, de 29 de maio de 2001, que determina aos próprios patrocinadores estatais o dever de exercer a fiscalização sobre as entidades e planos.
Em nossa avaliação, a atuação do TCU em face das EFPC se insere em um contexto mais amplo do fenômeno da expansão de sua competência a partir de suas próprias decisões e normativos.
Esse fenômeno pode ser dividido em dois movimentos ou tendências. O primeiro, especialmente direcionado às agências reguladoras, pôs em xeque a autonomia fiscalizatória e reguladora desses entes a partir da emissão sistemática de recomendações e determinações a essas autarquias. O TCU partia de um diagnóstico de que havia deficiência técnica na atuação das agências e, aprofundando sua análise (normalmente em processos de auditoria operacional), acabava por se substituir ao regulador, obrigando as agências a dirigir comandos aos agentes econômicos regulados, revelando uma postura de pouca deferência à atuação técnica das agências reguladoras. Essa tendência pode ser traduzida como uma espécie de “expansão vertical”.
A ampliação de atribuições da Corte de Contas também se faz sentir em outro plano: numa vertente horizontal[1]. Cada vez mais, o TCU se considera competente para fiscalizar novas categorias de jurisdicionados. Trazemos alguns precedentes de fiscalização: (i) das seguradoras, no caso do seguro DPVAT (Acórdão-TCU Plenário nº 2609/2016, Rel. ministro Bruno Dantas, e nº 2765/2022, Rel. ministro Antonio Anastasia); (ii) das “semi-estatais” (Acórdão-TCU Plenário nº 2.706/2022, Rel. ministro Bruno Dantas); e (iii) de outros entes já regulados por outras instâncias de controle e fiscalização, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e, no caso em questão, a Previc.
A expansão da atuação de primeira ordem do TCU em face dos fundos de pensão (ou EFPC), tornando-os sujeitos a sua jurisdição, gera, a partir dos precedentes indicados antes, duas possíveis e relevantes consequências: (i) a necessidade de essas entidades observarem os princípios da Administração Pública, tal como alguns precedentes dessa Corte Federal têm indicado; e (ii) a criação de uma série de obrigações destinados às entidade fechadas a fim de atender as auditorias feitas pelo TCU, o que pode implicar, no limite, a exigência de que prestem contas ao Tribunal diretamente.
Nossa longa atuação no segmento das entidades fechadas nos faz crer que essas pessoas jurídicas e seus gestores achem natural que exista cuidadosa fiscalização sobre a sua atividade de gestão de recursos de terceiros. Isso é visto com naturalidade e é bem aceito, sendo inegável o papel central que a fiscalização feita precipuamente pela Previc representa para o aprimoramento e avanço das práticas de gestão.
O ponto central, portanto, reside na sobreposição de instâncias fiscalizadoras e na indefinição dos parâmetros que devem ser observados.
Por sua vez, não se pode ignorar que as EFPC são pessoas jurídicas de direito privado, tal como determinam o art. 202, caput da Constituição Federal e o art. 1º da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Os valores dos patrocinadores públicos aportados nas entidades fechadas passam a se vincular exclusivamente aos participantes, pessoas naturais. Todos os montantes devem ser usados para pagar benefícios previdenciários e, no limite de liquidação do plano ou da entidade de previdência, as reservas garantidoras existentes serão distribuídas somente para os participantes e assistidos, tal como prevê o art. 50 da LC 109/2001. Não haverá devoluções para os patrocinadores estatais.
A lógica subjacente a essa estrutura jurídica está na desoneração do ente público, que deixa de estar responsável pelos pagamentos de complementações de aposentadorias e pensões. Esse ônus se desprende da tutela estatal e passa a ser de um privado, que não possui obrigações de natureza pública. Essa é uma forma de ajuste perene das contas públicas, pois bem sabe-se o imenso ônus que é o custeio do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos nas três esferas da federação.
Por fim, o que se vê, tanto na recente decisão do TCU em relação aos planos de equacionamento de déficit em curso, quanto na decisão do STF do início de outubro, é um crescente risco de se estar caminhando para “publicizar” a previdência complementar dos servidores e empregados públicos, num modelo utilizado na Argentina. Lá, se entendeu que a previdência dos servidores públicos deveria abolir o modelo privado complementar e o Tesouro do estado nacional passou a prover benefícios integrais para essas categorias. A atual situação econômica de nosso país vizinho indica que houve erros graves no passado, dentre os quais o modelo de previdência de servidores e empregados públicos, que sufocam as contas públicas.
Esperamos que a posição do TCU e do ministro Zanin possam ser objeto de mais profundas reflexões, pois tratam de temas complexos, e sejam revistas, evitando que se coloque em risco a sólida experiência e trajetória da previdência complementar no Brasil.