A utilização de referências genéricas nos anúncios não é capaz de desconfigurar a existência de apelo amplo e indiscriminado
Após denúncia[1] a respeito de “volumosas emissões de debêntures” com “retorno garantido” por parte de uma holding, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) julgou, em 20 de agosto de 2024, o PAS CVM n° 19957.003418/2023-01, de relatoria do presidente João Pedro Nascimento, que apurou a responsabilidade da referida empresa e de seus sócios e administradores.
A investigação constatou que a empresa: (i) captava recursos de investidores por meio de seu website e de páginas em redes sociais; (ii) captou um valor quatro vezes maior ao informado à autarquia anteriormente; e (iii) ao invés de cumprir com a destinação que foi informada na escritura das debêntures, direcionou parcela dos recursos captados à conta bancária de seus acionistas. Também foi constatado que diversos investidores enfrentaram dificuldades para o resgate dos recursos aportados.
Após a fase instrutória, a empresa e seus sócios e administradores foram acusados por realizar: (i) oferta pública de valores mobiliários sem o devido registro previsto no art. 19 da Lei nº 6.385/1976 e no art. 2º da então vigente Instrução CVM nº 400/2003 (ICVM 400)[2]; (ii) operação fraudulenta, em infração ao art. 3º c/c inciso III do art. 2º da Resolução CVM nº 62/2022 (RCVM 62) (item I c/c item II, “c”, da ICVM nº 08/1979, vigente à época); e (iii) embaraço à fiscalização, em infração ao art. 1º, parágrafo único, do Anexo B, da Resolução CVM nº 45/2021 (RCVM 45).
De acordo com o voto, os elementos para a caracterização de uma oferta pública estavam presentes, pois a prospecção do investimento foi feita mediante anúncios na internet e em mídias sociais, dirigidos a uma generalidade de indivíduos, sem que, todavia, tivessem sido observados os normativos aplicáveis.
O presidente ressaltou que a utilização de referências genéricas nos anúncios não é capaz de desconfigurar a existência de apelo amplo e indiscriminado, visto que não constituía “um filtro capaz de restringir a adesão indiscriminada de potenciais investidores”.
Ainda, destacou que a necessidade de registro das ofertas públicas de valores mobiliários, visando à proteção do interesse do público investidor, atende ao regime informacional da autarquia, “que é a pedra angular da regulação do Mercado de Capitais”.
No que tange à operação fraudulenta, o presidente João Pedro Nascimento destacou que a jurisprudência da CVM já solidificou elementos (cumulativos) para sua identificação em diversos precedentes. São eles: (i) a utilização de ardil ou artifício, com a intenção de ludibriar vítimas[3]; (ii) a concreta indução ou manutenção de terceiros em erro[4]; e (iii) a intenção dolosa de obter vantagem indevida para si ou para terceiros, em prejuízo da parte ludibriada[5]. Ressalte-se que a não comprovação da obtenção de benefício econômico não descaracteriza o dolo, sendo suficiente que se demonstre o objetivo de beneficiar a si ou a terceiros.
Por fim, o embaraço à fiscalização se caracteriza quando, injustificadamente, não se atende, no prazo estabelecido, a intimação para prestação de informações ou esclarecimentos que houver sido formulada pela CVM, ou quando não se coloca à disposição da CVM os documentos necessários para instruir sua ação fiscalizadora.
Segundo o presidente, de acordo com o texto legal e os precedentes da autarquia, depreendem-se dois requisitos para a verificação de embaraço à fiscalização: (i) a prática de uma atividade fiscalizatória por parte da CVM; e (ii) o dolo de frustrar ou dificultar a investigação, por intermédio de uma conduta comissiva ou omissiva. Com relação a esse último, destaca que o dolo e a má-fé não podem ser presumidos, sendo necessária a reunião de indícios que demonstrem que os acusados tinham (ou poderiam ter) acesso à informação solicitada e que tinham a intenção de frustrar a investigação.
No caso concreto, a CVM entendeu que a atividade fiscalizatória foi evidenciada pelo envio de ofícios e intimações solicitando esclarecimentos e que a companhia respondeu ofícios de forma evasiva e incompleta (e, em outra ocasião, não apresentou resposta), demonstrando “evidente intenção de obstruir as investigações ou, no mínimo, dolo eventual de fazê-lo”.
A CVM multou em mais de R$ 26.9 milhões a empresa e seus sócios pela realização de oferta pública irregular, operação fraudulenta e embaraço à fiscalização. Para mais informações sobre a decisão, basta clicar aqui.
A decisão está sujeita a recurso ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN).
[1] Inicialmente, foi instaurado o Processo 19957.003716/2022-10 a fim de apurar os fatos alegados na denúncia. Diante da suspeita de oferta de valores mobiliários sem os devidos registros, o referido processo foi encaminhado à Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) que, após coletar as informações que considerou relevantes, lavrou termo de acusação em 17 de agosto de 2023.
[2] E sem a dispensa mencionada no inciso I, do § 5º do art. 19 da Lei nº 6.385/1976 e no art. 4º da mesma instrução.
[3] A holding foi constituída apenas três meses antes da 1ª emissão de debêntures, sucedida por outras cinco emissões no período de um ano, com a intenção de captar até, aproximadamente, R$ 61 milhões para “reforço do capital de giro”. De acordo com o voto, o valor era incondizente com o financiamento das atividades de uma companhia que possuía (i) como objeto social “consultoria financeira e de investimentos” e (ii) baixo capital. Nesse contexto, concluiu-se que os recursos captados não tiveram a destinação que lhes foi anunciada, revelando que as emissões foram negócios simulados, com a finalidade de se obter vantagem indevida para a empresa e, indiretamente, seus sócios.
[4] “Conforme restou evidenciado, diversos debenturistas enfrentaram problemas no resgate de seus investimentos, e não obtiveram a devolução dos recursos aportados no prazo previsto nas escrituras. Em muitos casos, a estratégia usada pela companhia na tentativa de camuflar o inadimplemento foi a de oferecer o reinvestimento dos recursos, por vezes, inclusive, oferecendo percentual de rendimento maior, em dinâmica semelhante às pirâmides financeiras e aos Esquemas Ponzi”.
[5] O dolo restaria evidente visto que as emissões de debêntures teriam sido negócios simulados com a intenção de se obter vantagem indevida para a empresa e seus sócios – que receberam parte dos recursos captados nas emissões de debêntures, demonstrando que era essa a real intenção dos envolvidos.