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Estatais de saneamento básico em prestações regionalizadas: qual o debate?

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Em abril deste ano, o presidente da República assinou o Decreto nº 11.467/2023, dispondo sobre a prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico. O normativo tem como objetivo regulamentar diferentes dispositivos do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (NMLSB)[1], mas foi alvo de diversas críticas e, nesse sentido, o Congresso Nacional autuou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 107/2023 para sustar, dentre outros pontos, a disposição referente a prestação direta em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões.

O cenário anterior ao NMLSB permitia dois caminhos aos municípios, titulares do interesse local, para não prestarem diretamente o serviço: (i) realizar licitação para delegar a prestação dos serviços à iniciativa privada; ou (ii) firmar contratos de programa – instrumentos não licitados, precários e atípicos – com entes não vinculados ao titular. Notadamente, os contratos de programa eram pactuados entre os municípios e empresas públicas estaduais.

Com o advento da Lei nº 14.026/2020, ficou vedada expressamente a celebração de contratos de programa para prestação dos serviços de saneamento básico[2]. Desse modo, desde 2020, os municípios que desejassem delegar a prestação – seja para iniciativa privada ou para uma estatal – deveriam, obrigatoriamente, realizar uma licitação[3]. Essa mudança buscou consagrar maior segurança jurídica para a prestação desses serviços, além do aumento da concorrência e o incentivo a maior entrada da iniciativa privada no setor.

Dentre as formas de prestação, há aquela regionalizada, que pode ser consolidada por meio de região metropolitana, aglomeração urbana e as microrregiões, instituídas quando se verifica o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre os municípios (art. 3º da Lei federal nº 11.447/07). Por isso, são consideradas prestações de interesse comum, e não apenas local, o que atrai o estado ao qual as municipalidades façam parte para o compartilhamento da titularidade do serviço (art. 8º, inciso II, Lei federal nº 11.447/07).

Então, o Decreto, em seu artigo 6º, § 16, dispôs que a prestação dos serviços em determinado município integrante de estrutura de prestação regionalizada – nas hipóteses de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião –, por entidade que integre a administração do respectivo estado (art. 8º, II, Lei federal nº 11.445/2007), dependerá apenas da autorização da entidade de governança interfederativa e será equiparada à prestação direta.

Nesse sentido, uma das críticas formuladas ao Decreto é que este teria permitido e incentivado a prestação direta por empresas estatais estaduais nessa hipótese, visto que bastaria a autorização da governança interfederativa daquela região. Conforme visto, o NMLSB expressamente vedou a possibilidade de pactuação de novos contratos de programa, sendo obrigatória a prévia licitação quando a prestação do serviço não for feita diretamente “por entidade que não integre a administração do titular” (art. 10, Lei federal nº 11.445/2007).

Então, sustenta-se que a titularidade não é transferida por completo aos estados, e, portanto, suas estatais não seriam empresas integrantes da “administração do titular”. Neste ponto, invoca-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 1842, na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que, em casos de interesse comum, a titularidade é da entidade regional, e não do Estado em si. Contudo, tal julgamento ocorreu antes da edição do NMLSB.

Por outro lado, há argumentos no sentido de que, em prestações de serviços de saneamento de interesse comum, o estado, por sua cotitularidade, passa a integrar a estrutura administrativa referente à prestação dos serviços, por interpretação conjugada do art. 8º, II, e art. 10, ambos da Lei federal nº 11.445/2007. Assim, o colegiado gestor não estaria obrigado a licitar se a execução do serviço for delegada a alguma empresa estatal – municipal ou estadual – integrante da região. Esta foi a interpretação dada pelo governo federal à titularidade dos estados.

O ponto central do debate, portanto, é a interpretação referente à titularidade dos estados nos casos de prestação regionalizada, e, por conseguinte, se a companhia estatal seria uma entidade que integra a administração do titular e, caso afirmativo, passível de contratação direta, nas hipóteses de região metropolitana, aglomeração urbana e as microrregiões[4].

Em decorrência do Decreto, atualmente, tramitam no STF duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) questionando especificamente essa disposição, com pedido de medida liminar para sustar os efeitos dos dispositivos impugnados[5].

Primeiro, em 06 de abril deste ano, o Partido Novo ajuizou a ADPF nº 1.055. Sustentou que o Decreto inovou a lógica do NMLSB, violando diversos preceitos fundamentais. Além de outros pontos, o Partido contesta diversos parágrafos do art. 6º, alegando que estes teriam violado a exigência de prévia licitação nas estruturas de prestação regionalizada, além de implicitamente tornarem permitidos os instrumentos precários de prestação dos serviços de saneamento.

Segundo o Partido Novo, nas estruturas de prestação regionalizada de unidades territoriais urbanas, a titularidade dos serviços é apenas do conselho deliberativo, à luz da ADI nº 1842. Por isso, a delegação sem licitação prévia só seria admitida caso o prestador fosse diretamente vinculado ao conselho deliberativo, sendo, portanto, inadequada a possibilidade de prestação pelo Estado ao qual as municipalidades integram.

Na mesma toada, em 13 de abril, o Partido Liberal ajuizou a ADPF nº 1.057 para impugnar dispositivos do Decreto. Apesar de não tratar especificamente sobre a necessidade de prévia de licitação para a prestação regionalizada, a ação também contestou dispositivos que iriam contra a vedação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico mediante instrumentos precários, como o contrato de programa[6].

Além dos questionamentos na seara Judiciária, conforme mencionado, em 10 de abril o Congresso Nacional autuou o PDL 107/2023 para sustar a prestação direta dos serviços, nos termos estabelecidos no Decreto. A matéria foi recepcionada pelo Senado sob nº 98/23, tendo sido realizada Audiência Pública em 13 de junho com a participação dos ministros da Casa Civil e das Cidades, que defenderam a regularidade do Decreto[7]. Posteriormente, a matéria será remetida de volta à Câmara dos Deputados.

Segundo a justificativa do PDL 107/2023, o presidente da República teria extrapolado sua competência regulamentar ao flexibilizar as regras do NMLSB. Isso porque entende que o Decreto abre brechas para a regularização de contratos precários e para a prestação dos serviços pelas companhias estaduais nas regiões metropolitana, microrregiões ou aglomerações urbanas, sem que haja prévia licitação, desrespeitando as previsões do NMLSB e os princípios fundamentais inerentes da Administração Pública.

Ainda, afirmou que os Decretos convalidam possível estratégia a ser utilizada por municípios para manterem a prestação por estatais. O município seria inserido em uma “microrregião” e a empresa estadual prestadora de serviço estaria autorizada a prestação direto, contornando a previsão legal. Nesse sentido, a Câmara entende que o estado não possui titularidade de prestação dos serviços, mas os decretos abrem a possibilidade de a prestação regionalizada ser utilizada como uma “manobra” para contornar a necessidade de prévia licitação.

Importante destacar que não há nenhum impeditivo à participação das estatais estaduais em certames licitatórios. Inclusive, a Sabesp integrou consórcio para participação de leilão de saneamento promovido pelo estado de Alagoas. Entretanto, algumas estatais não conseguiram comprovar sua capacidade econômico-financeira no prazo delimitado inicialmente pelo NMLSB, o qual foi adiado para 31 de dezembro de 2023 pelo Decreto federal nº 11.466/23, o que poderia explicar a tentativa do governo federal de tentar flexibilizar as regras para a prestação direta.

Outro ponto relevante é que os decretos podem ter gerado maiores inseguranças jurídicas ao setor de saneamento básico[8], o que afeta a confiabilidade do mercado, e, por conseguinte, as obtenções de investimentos – tão relevantes ao cumprimento das metas de universalização, que se encerram em dez anos.

Por fim, não se pode desconsiderar o necessário debate para definir qual deverá ser o instrumento que irá formalizar a prestação do serviço, uma vez que o NMLSB extinguiu, em qualquer hipótese, a celebração de novos contratos de programa.

A equipe de Direito Público do Bocater, Camargo, Costa e Silva e Rodrigues Advogados seguirá acompanhando o tema e se coloca à disposição para esclarecimentos adicionais sobre o assunto.

 

[1] Lei nº 11.445/2007, alterada pela Lei nº 14.026/2020.
[2] Art. 1º da Lei nº 14.026/2020: Esta Lei atualiza o marco legal do saneamento básico e […] para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal, a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 […] (grifou-se) Apesar de formalmente extintos, a lei prestigiou um período de transação, autorizando que os contratos de programa regularmente firmados no cenário anterior continuassem em vigor até a conclusão do prazo originalmente previsto. Além desta hipótese, qualquer tentativa normativa de prorrogar esses contratos ou de firmar novas pactuações com essa roupagem serão manifestadamente ilegais. (Grifou-se)
[3] Art. 10, caput, da Lei nº 11.445/2007, alterada pela Le nº 14.026/2020: “A prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.” (Grifou-se)
[4] Sobre o assunto, está em curso no STF a ADI nº 7335 para questionar legislação da Paraíba que permite à Companhia de Água e Esgotos da Paraíba a prestação direta em microrregiões do estado.
[5] Até a publicação desta Newsletter, ambas estavam pendentes de julgamento.
[6] Em adicional, segundo a inicial, o Decreto 11.466 optou, contra legem, por prorrogar a validade de instrumentos contratuais irregulares, como o contrato de programa. Em relação ao Decreto 11.467, argumenta este normativo flexibilizou o acesso aos recursos públicos federais ao prever que o requisito de estruturação de prestação regionalizada não será aplicável para os empréstimos realizados até 31.12.2025. Acesse o trâmite da ADPF nº 1.057: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6617828>
[7] Em sua fala, o Ministro das Cidades afirmou que as alterações retiram amarras dos participantes da prestação regionalizada possibilitando a escolha pela prestação direta se entenderem, por exemplo, que a estatal presta um bom serviço, buscando não oferecer uma solução única para a prestação dos serviços em todos os Municípios do país. A íntegra da audiência pública está disponível no canal do Youtube da TV Senado: < https://www.youtube.com/watch?v=2n-rl2ytU_M>.
[8] O NMLSB possui vigência de menos de quatro anos no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, o Decreto do governo federal flexibiliza normas e parâmetros que tiveram pouco tempo para consolidação. Além disso, as alterações promovidas suscitaram dúvidas a respeito da interpretação e aplicação dos dispositivos que deveria regulamentar, contendo, inclusive, flexibilizações às regras do NMLSB. Dessa forma, ao invés de robustecer a previsibilidade do setor, promoveu alterações que abrem espaço para questionamentos, inclusive no âmbito Judiciário e Legislativo, os quais geram um cenário de incerteza que mina a confiabilidade necessária do mercado para aplicação de novos investimentos no setor.

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