A Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados (SEDDM), vinculada ao Ministério da Economia, lançou publicamente, no dia 11 de janeiro, a iniciativa “Incorpora, Brasil!”, que prevê a alienação de imóveis da União por meio da constituição de Fundos de Investimento Imobiliário (FII)[1].
De acordo com a SEDDM, a ideia do “Incorpora” é criar diversos FIIs com blocos de imóveis “temáticos”, definidos de acordo com os potenciais exploratórios de cada um dos ativos. A título exemplificativo, os imóveis com potencial para exploração turística serão agrupados em um único FII, os bens com potencial para exploração logística serão reunidos em outro fundo e assim sucessivamente, de acordo com a natureza do ativo a ser alienado.
Segundo a minuta de regulamento genérica dos fundos, os FIIs serão constituídos com o objetivo de maximizar o retorno econômico do ente desestatizante. Para isso, o administrador do fundo pode reformar, alienar, locar, edificar, arrendar e explorar como quiser os imóveis veiculados ao FII bem como, adquirir ou integralizar novas cotas.
O projeto foi estruturado a partir da autorização concedida pelo artigo 20 da Lei n° 13.240/2015[2] e pela Lei n° 14.011/2020, que alterou a redação da Lei nº 9.396/1998[3]. Operacionalmente, o programa será implementado, com base na Portaria nº 14.490/21 da própria SEDDM, que prevê a utilização a sondagem de mercado como passo necessário à estruturação do “Incorpora”.
No caso, a União realizará a integralização dos bens de sua propriedade, para a constituição do capital social do FII – que, agora, serão de titularidade do fundo imobiliário – e passará a figurar como cotista do fundo. Essa operação efetiva a alteração da titularidade dos direitos de propriedade desses imóveis, e, com a materialização dessa transferência, modifica a própria natureza dos bens, que deixarão de ser enquadrados como bens públicos[4] para passarem a figurar como bens privados[5].
Em termos numéricos, a relevância da iniciativa é verificada a partir da constatação de que a União possui R$1,34 trilhão em patrimônio imobiliário, com um custo de carregamento anual de R$139 bilhões. A meta da Secretaria, com o “Incorpora”, é alienar aproximadamente R$4 bilhões por ano em imóveis a partir da integralização de imóveis, para a constituição dos FIIs, ao longo dos próximos anos[6].
Em uma análise prévia da iniciativa, o Tribunal de Contas da União (TCU) considerou, no âmbito do processo nº 026.059/2021-5[7], que a operação seria viável e estaria de acordo com o ordenamento jurídico. No entanto, recomendou que a Secretaria elaborasse um mapeamento e análise de risco do projeto de implementação do FII como um todo, envolvendo as etapas de seleção de imóveis, publicação de portarias, contratação do administrador, integralização dos imóveis e gestão das cotas, considerando as experiências já existentes na Administração Pública.
Diante disso, na atual fase do projeto, a SEDDM está realizando um levantamento junto ao mercado para considerar quais imóveis serão alienados e quais seus atuais valores de mercado. Além disso, a primeira rodada do leilão, em que serão escolhidos os administradores dos primeiros fundos, a partir da apresentação das propostas dos possíveis interessados, está em fase de preparação.
O critério para a escolha utilizado no leilão, que adotará o modelo de pregão, será a melhor proposta ofertada, com enfoque especial na menor taxa de administração possível, que, pelo edital, é definida no limite de 0,2%, e no máximo de 2,5%. Para que sejam habilitadas, como participantes da licitação, as empresas devem administrar ou possuir o equivalente a R$500 milhões e estarem dispostas a fazer um aporte inicial mínimo, em dinheiro, de 10% do patrimônio líquido do fundo a ser administrado.
Mesmo diante de tal iniciativa, ainda há, atualmente, diversas dúvidas quanto ao recurso e, portanto, à constituição dos fundos de investimento imobiliários, como uma modalidade de desestatização imobiliária.
Frente a esse cenário, o BNDES em parceria com uma instituição de ensino, elaborou um conjunto de enunciados, ao longo da Jornada de Direito dos Imóveis Públicos, promovida por ambas as entidades, com o propósito de elucidar os principais questionamentos atrelados: (i) ao uso dos FIIs pelo setor público; (ii) ao regime jurídico ao qual essas entidades se submetem; (iii) à estruturação dos FIIs com imóveis públicos; (iv) à integralização das cotas dos fundos com imóveis de propriedade da Administração Pública; (v) à situação registral dos imóveis e dos direitos a serem integralizados; (vi) aos aspectos tributários dessas transações; (vii) à participação de investidores privados e à possibilidade de negociação de suas respectivas cotas pelo Poder Público; (viii) à alocação de riscos; e, (ix) às alternativas para o aproveitamento econômico de imóveis públicos.
De maneira pormenorizada, um ponto importante, mas não discutido, até o momento, é aquele relativo ao futuro da fiscalização dos próprios fundos imobiliários. Como indicado, estas entidades possuem natureza jurídica privada e, portanto, a administração e a gestão de seus ativos também são privadas, o que afasta a competência dos órgãos de controle para fiscalizar diretamente os fundos e, desse modo, para avaliar as operações firmadas pelos FIIs bem como, a sua respectiva performance[8].
A equipe de Direito Público do Bocater, Camargo, Costa e Silva e Rodrigues, continuará acompanhando os desdobramentos do tema e permanece disponível para esclarecimentos.
[1] Um FII é um condomínio fechado, dividido em cotas, que aplica recursos em empreendimentos imobiliários ou administra certos imóveis, que são de propriedade do Fundo.
[2]Lei nº 13.240/2015, artigo 20: “Os imóveis de propriedade da União arrolados na portaria de que trata o art. 8º e os direitos reais a eles associados poderão ser destinados à integralização de cotas em fundos de investimento.”
[3] Lei n° 9.396/1998 com a nova redação, artigo 24-D, parágrafo 1º, inciso II: “A Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União poderá contratar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com dispensa de licitação, para a realização de estudos e a execução de plano de desestatização de ativos imobiliários da União. § 1º A desestatização referida no caput deste artigo poderá ocorrer por meio de (…) II – constituição de fundos de investimento imobiliário e contratação de seus gestores e administradores, conforme legislação vigente”.
[4] Dos artigos 98 e 99 do Código Civil de 2002: “Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Art. 99. São bens públicos: I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
[5] Essa transmutação da natureza dos ativos é semelhante àquela que ocorre no caso das entidades fechadas de previdência complementar (EFPC) patrocinadas por entes estatais. Enquanto no caso dos FIIs, os imóveis deixam de ser titularizados pela União – Poder Público – e passam a ser de propriedade de um ente privado – o próprio fundo –, no caso das EFPCs, com o ingresso dos recursos aportados pelos patrocinadores, nas contas das referidas entidades, estes deixam de ser públicos e passam a ser privados, na medida em que pertencem aos participantes e aos assistidos dos planos de benefícios.
[6] Informação disponível no TC nº 026.059/2021-5, §§ 29 e 31.
[7] Acompanhamento da Implementação do Fundo de Investimento Imobiliário para fins de Desinvestimento de Ativos Imobiliários da União e utilização do Sistema de Concorrência Eletrônica para a venda de imóveis da União.
[8] Nesse sentido e a partir do paralelo traçado entre os FIIs e as EFPC, com relação à essas últimas, o TCU já reconheceu que “não cabe ao [Tribunal] impor parâmetros ou metas de rentabilidade ou de eficiência às entidades fechadas de previdência complementar patrocinadas pela União, pelas sociedades de economia mista e pelas empresas públicas federais, mas é da sua competência verificar a legalidade, a legitimidade, a eficiência e a eficácia da aplicação dos recursos públicos, sobretudo nas hipóteses de operações que possam gerar prejuízos ao erário” (Acórdão 595/2018-Plenário).