Entrou em vigor, no último dia 1º de abril, a Lei Federal nº 14.133/2021, que dispõe sobre o novo marco legal das licitações e contratações públicas para a Administração Pública direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Decorridos dois anos da sua publicação, a nova Lei revogará as Leis nº 8.666/93 (Lei de Licitações) e nº 10.520/2002 (Lei do Pregão), e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratações). Tais procedimentos passam a ser regulamentados de forma unificada pela Lei nº 14.133/2021, que busca dar maior agilidade e eficiência ao regime de licitações e contratos administrativos.
Dentre as alterações e inovações trazidas pelo novo diploma legal, merece destaque uma que parece ter sido involuntária. Trata-se do papel dos Tribunais de Contas na fiscalização de controle, em especial do poder cautelar conferido a esses órgãos para suspender a realização de certames, estabelecido pelo art. 171 da Nova Lei, in verbis:
Art. 171. Na fiscalização de controle será observado o seguinte: (…)
§ 1º Ao suspender cautelarmente o processo licitatório, o tribunal de contas deverá pronunciar-se definitivamente sobre o mérito da irregularidade que tenha dado causa à suspensão no prazo de 25 (vinte e cinco) dias úteis, contado da data do recebimento das informações a que se refere o § 2º deste artigo, prorrogável por igual período uma única vez, e definirá objetivamente: I – as causas da ordem de suspensão; II – o modo como será garantido o atendimento do interesse público obstado pela suspensão da licitação, no caso de objetos essenciais ou de contratação por emergência.
§ 2º Ao ser intimado da ordem de suspensão do processo licitatório, o órgão ou entidade deverá, no prazo de 10 (dez) dias úteis, admitida a prorrogação: I – informar as medidas adotadas para cumprimento da decisão; II – prestar todas as informações cabíveis; III – proceder à apuração de responsabilidade, se for o caso.
§ 3º A decisão que examinar o mérito da medida cautelar a que se refere o § 1º deste artigo deverá definir as medidas necessárias e adequadas, em face das alternativas possíveis, para o saneamento do processo licitatório, ou determinar a sua anulação.
§ 4º O descumprimento do disposto no § 2º deste artigo ensejará a apuração de responsabilidade e a obrigação de reparação do prejuízo causado ao erário.
O real intento do legislador na elaboração do dispositivo, ao que tudo indica, foi o de garantir um prazo razoável para o definitivo saneamento de processos licitatórios que tenham sido suspensos cautelarmente por decisão dos Tribunais de Contas. Isso para evitar o chamado “periculum in mora reverso”, isto é, o risco de que a eventual demora na apreciação do mérito acarrete maiores prejuízos ao interesse público. Nesse sentido, o art. 171, §1º da Lei nº 14.133/2021 determina que as Cortes de Contas deverão decidir o mérito de cautelar eventualmente concedida no prazo de 25 dias úteis. A contagem desse prazo inicia-se a partir da data do recebimento das informações solicitadas ao órgão responsável pela licitação, podendo ser prorrogado por igual período uma única vez.
Mas não é só. O dispositivo, ao versar sobre a suspensão cautelar de processos licitatórios, acabou reconhecendo, ainda que indiretamente, a possibilidade de os Tribunais de Contas disporem de medidas cautelares para assegurar a efetividade de suas decisões finais e minimizar prejuízos ao erário. Em outras palavras, o legislador, ao regular o trâmite das medidas cautelares, incidentalmente, positivou o poder geral de cautela do Tribunal de Contas da União (TCU).
É certo que o TCU já há muito admitia o uso de medidas cautelares, recorrendo-se ao Regimento Interno do TCU – RITCU para a “positivação” desse poder geral de cautela[1]. O assunto, contudo, é controvertido: muito se critica que essa prerrogativa não possui assento constitucional e que o Tribunal estaria reinterpretando suas atribuições e expandindo, por meio de ato infralegal, suas competências para além daquelas hipóteses previstas no art. 71, incisos IX e X da Constituição Federal[2], que permitem a utilização de medidas cautelares somente para sustação de atos administrativos irregulares quando estes não são corrigidos dentro do prazo determinado pelo órgão de controle, devendo a referida medida ser, ainda, comunicada à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal.
O Tribunal de Contas da União, no entanto, afirma que o seu poder geral de cautela encontra amparo, à luz da teoria dos poderes implícitos, nas competências corretivas previstas na Constituição. A teoria dos poderes implícitos preconiza que a Carta Maior, ao conferir poderes a determinado órgão, também lhe confere, implicitamente, os meios necessários para a sua execução. Assim, mesmo que o poder cautelar do TCU não esteja literalmente previsto na Constituição, ele seria imanente ao próprio exercício de suas atribuições e competências[3], tese que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Mandado de Segurança (MS) 25.510, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, em 2003. Diante disso, a matéria contida no art. 276 do RITCU não estaria maculada por inconstitucionalidade, sendo inerente às competências da Corte de Contas.
O impasse parece ter sido resolvido, por ora, com a Lei nº 14.133/2021. Ao positivar em lei – malgrado que incidentalmente – a questão, o legislador admite que o Tribunal de Contas da União disponha de medidas cautelares no uso de suas atribuições, inclusive para sustar processos licitatórios. Desse modo, transforma-se em regra aquilo que surgiu como uma prática interna da Corte de Contas Federal, oriunda de uma autocompreensão que o órgão administrativo possuía de seus poderes, e não encontrou qualquer resistência por parte do Poder Judiciário.
A equipe de Direito Público do Bocater Advogados seguirá acompanhando os desdobramentos do possível impacto que a Nova Lei de Licitações e Contratações Públicas trará para o tema das medidas cautelares dos Tribunais de Contas, em especial do TCU.
Thiago Araújo, sócio (taraujo@bocater.com.br)
Daniella F. Teixeira, advogada (dteixeira@bocater.com.br)
Fernando Ferreira, advogado (fferreira@bocater.com.br)
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[1] O art. 276 do RITCU disciplina a matéria, versando que o Plenário, o relator, ou o Presidente, “em caso de urgência, de fundado receio de grave lesão ao erário, ao interesse público, ou de risco de ineficácia da decisão de mérito, poderá, de ofício ou mediante provocação, adotar medida cautelar, com ou sem a prévia oitiva da parte, determinando, entre outras providências, a suspensão do ato ou do procedimento impugnado (…)”.
[2] Art. 71 – O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (…) IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; X – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal.
[3] Esse é o entendimento aplicado pela Corte de Contas, podendo-se citar como exemplo o Acórdão nº 3251/2020-PL, Acórdão nº 3172/2020-PL, Acórdão nº 1174/2019-PL e Acórdão nº 198/2019-PL.