Em sessão no último dia 12 de maio, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.019, entendendo, por maioria dos votos, que o art. 10 da Lei nº 10.177/98 do Estado de São Paulo é inconstitucional. Trata-se de norma que estabelecia prazo decadencial de 10 anos para a anulação de atos administrativos declarados inválidos pela Administração Pública do Estado.
O processo teve origem em pleito da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), que questionou tal dispositivo sob a alegação de que haveria violação de competência privativa para legislar sobre prazo decadencial de atos administrativos. Na visão da associação, esse é um tema de Direito Civil e tem teor de norma geral de licitações e contratos, de modo que seu tratamento é de competência privativa da União, conforme o art. 22, incisos I e XXVII da Constituição Federal (CF).
No julgamento, houve três posicionamentos de destaque em que o foco foi o exame da constitucionalidade do prazo decadencial de dez anos previsto na lei estadual[1]. O primeiro foi o do Ministro Relator, Marco Aurélio Mello, que acolheu os argumentos da ABCR e julgou procedente a ação, declarando a inconstitucionalidade do dispositivo. O Ministro Marco Aurélio sustentou que, de fato, o art. 10 da Lei nº 10.177/98 trata sobre matéria de competência da União, incorrendo em vício formal.
Apontou, ainda, a existência de vício material, dado já existir, no âmbito federal, lei que prevê o prazo decadencial de 5 anos para anulação de atos administrativos[2], sendo irrazoável compreender que as 27 unidades da Federação podem estipular prazo decadencial individualizado.
Já o Ministro Alexandre de Moraes, acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, manifestou-se pela improcedência da ação. Em sua fundamentação, apontou que o princípio da repartição de competência é o da predominância do interesse. Assim, o ente federativo deve ser competente para tratar de temas relacionados à abrangência do seu interesse, devendo ele prevalecer em hipóteses que envolvem a interpretação de diversas matérias do Direito: se geral ou federal, o interesse é da União; se regional, do Estado; e, se local, do Município.
Além disso, o Ministro alegou que, mesmo em se considerando a precedência histórica do Direito Civil para tratar de assuntos como o da prescrição e decadência, pelo tema tratar sobre prazo decadencial para o exercício da autotutela administrativa, o certo seria aplicar ao caso a matéria de Direito Público, do qual cuida o Direito Constitucional e o Administrativo. Isso implicaria no reconhecimento de os Estados editarem leis com o propósito de regular o desempenho de suas competências administrativas, entre as quais se insere o poder-dever de averiguar a validade de atos administrativos[3], de modo que ficaria afastada qualquer hipótese de vício de inconstitucionalidade.
O entendimento prevalente, contudo, foi o do Ministro Luís Roberto Barroso, que foi acompanhado pelos Ministros Nunes Marques, Rosa Weber, Carmen Lúcia, Luiz Fux e Gilmar Mendes. Em seu voto, o Ministro declarou não haver inconstitucionalidade formal[4], mas sim, material. No entanto, diferentemente do Ministro Marco Aurélio, que fundamentou seu entendimento com base em violação ao princípio da razoabilidade, o Ministro Luís Roberto Barroso alegou a ocorrência de violação ao princípio da isonomia, nos seguintes termos:
“3. O dispositivo impugnado não viola os princípios constitucionais da segurança jurídica e da razoabilidade. O prazo decenal não é arbitrário e não caracteriza, por si só, instabilidade das relações jurídicas ou afronta às legítimas expectativas dos particulares na imutabilidade de situações jurídicas consolidadas com o decurso do tempo. Esse é, inclusive, o prazo prescricional geral do Código Civil (art. 205) e de desapropriação indireta (Tema 1.019, STJ), dentre outros inúmeros exemplos no ordenamento jurídico brasileiro.
4. Sem embargo, o prazo quinquenal consolidou-se como marco temporal geral nas relações entre o Poder Público e particulares (v., e.g., o art. 1º do Decreto nº 20.910/1932 e o art. 173 do Código Tributário Nacional), e esta Corte somente admite exceções ao princípio da isonomia quando houver fundamento razoável baseado na necessidade de remediar um desequilíbrio específico entre as partes”. (grifou-se)
Nesse raciocínio, como os demais estados da Federação aplicam, seja por lei própria ou por aplicação analógica do art. 54 da Lei nº 9.784/99, o prazo quinquenal para anulação de atos administrativos em benefício dos administrados, o Estado de São Paulo não pode impor um tratamento diferente.
Considerando que o dispositivo questionado se aplicou durante aproximadamente 20 anos e que já havia julgados validando-o, foi proposta a modulação dos efeitos da decisão. Assim, ficou acordado que (i) as anulações já realizadas até a publicação da ata de julgamento serão mantidas; (ii) será aplicado o prazo decadencial de 10 anos nos casos em que o ato já tenha transcorrido mais da metade desse tempo; e (iii) para os demais atos administrativos já concretizados, será aplicado o prazo decadencial de 5 anos, contados a partir da publicação da ata de julgamento.
Esse reconhecimento da aplicabilidade do prazo quinquenal como regra para as relações entre o particular e o Poder Público é mais um indicativo de predominância de um raciocínio importante para outras controvérsias no campo do Direito Administrativo. Destaque-se a prescrição do ressarcimento de danos ao Poder Público no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU).[5]
A equipe de Direito Público do Bocater Advogados continuará acompanhando os desdobramentos do tema e eventuais decisões que partam do mesmo raciocínio.
Thiago Araújo, sócio (taraujo@bocater.com.br)
Daniella F. Teixeira, advogada (dteixeira@bocater.com.br)
Paulo Eduardo Rocha, estagiário (procha@bocater.com.br)
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[1] Os aditivos anulados que acabaram ensejando a discussão no STF foram objeto de estudo de Gabriela Engler, no texto “O caso da anulação dos aditivos de 2006 pela ARTESP: seria diferente à luz da nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro?”. No estudo, a questão foi abordada a partir de outro enfoque, postulando-se solução distinta: a aplicação da Lei 13.655/18, que alterou dispositivos da LINDB, para reestabelecer-se reequilíbrio contratual anulado quase 10 anos após sua formalização.
[2] O art. 54 da Lei Federal nº 9784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, prevê o prazo decadencial de 5 anos para anulação de seus atos administrativos.
[3] Vide art. 23, I, da CF/88.
[4] “Lei estadual que disciplina o prazo decadencial para o exercício da autotutela pela administração pública local não ofende a competência da União Federal para legislar sobre direito civil (art. 22, I, CF /1988) ou para editar normas gerais sobre licitações e contratos (art. 22, XXVII, CF/1988). Trata-se, na verdade, de matéria inserida na competência constitucional dos estados-membros para legislar sobre direito administrativo (art. 25, § 1º, CF/1988).”
[5] Em julho de 2020, nossa Newsletter abordou a evolução da jurisprudência do STF a respeito da prescrição do ressarcimento de danos ao Poder Público. Aventou-se, ali, que o estado da jurisprudência do STF era o de fixar prazo de cinco anos para a ocorrência dessa prescrição e, também por entendimentos do ministro Barroso, haveria aplicação da Lei nº 9.873/99, embora ainda houvesse indefinição sobre as causas de interrupção. Sobre esse tema, ainda se aguarda posicionamento definitivo do STF. Apesar disso, a fundamentação vencedora na ADI 6.019 pode ser um bom indicativo do raciocínio prevalente no colegiado para futuros julgamentos.