O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Recurso Especial nº 1.646.261/RJ, no qual se discutiu a relação jurídica entre o investidor titular de ações e a entidade de compensação e liquidação das operações em bolsa de valores (ECL), bem como sobre a responsabilidade desta entidade na hipótese de venda indevida de ações mediante procuração falsa apresentada à corretora de títulos e valores mobiliários (CTVM).
No caso, a autora da ação originária era titular de 20 mil ações da Telemar que foram vendidas em mercado pela ECL, em 1993, em atenção à ordem da CTVM, executada em nome da cliente. A venda, contudo, se deu sem a autorização da autora, pois fora utilizada uma procuração falsa, apresentada por terceiro à corretora.
Ao tomar ciência do ocorrido, a autora ajuizou ação contra a ECL e a Telemar, buscando indenização pelos danos sofridos. Em primeiro grau, o juízo reconheceu a ilegitimidade passiva da Telemar e condenou a ECL a pagar à autora os valores referentes às ações transferidas, com juros legais e correção monetária, desde a sua venda no mercado, acrescidos de quantia a título de danos morais.
A ECL recorreu da condenação e o tribunal manteve a decisão de primeiro grau, reconhecendo que a atividade dessa entidade configura fornecimento de serviço, o que caracterizaria relação consumerista. Inconformada com a decisão de segundo grau, a ECL recorreu ao STJ.
No STJ, o voto da relatora ministra Nancy Andrighi, acompanhado por unanimidade pela terceira turma, inicialmente enfrentou questões processuais do caso e, na sequência, passou a dispor sobre a dinâmica de funcionamento do mercado de capitais e da negociação de ações em bolsa de valores.
Destacou a relatora que, no mercado acionário, o investidor não pode negociar ações na bolsa de valores de forma direta, sendo imprescindível que seja representado por um intermediário.[1] Nesse sentido, os investidores, contratam uma CTVM para que possam negociar em bolsa de valores, sendo que cabe à corretora contratar o serviço de custódia prestado pela ECL, que realiza a compensação e a liquidação das ordens de compra e venda emitidas pelas corretoras em nome dos seus clientes. Ou seja, a CTVM atua como intermediária entre os investidores e as entidades de compensação e liquidação.[2]
Assim, percebe-se que existem “duas relações jurídicas completamente distintas: I) uma entre o investidor e a corretora; e II) outra entre a corretora e a entidade de compensação e liquidação”,[3] sendo que a primeira constitui uma relação de consumo, já que a corretora fornece a prestação de seus serviços no mercado, mediante remuneração, que são adquiridos e utilizados pelo investidor como destinatário final.[4]
No que diz respeito à segunda relação, entre a CTVM e a ECL, a relatora pontuou que esta entidade, na condição de órgão auxiliar da Comissão de Valores Mobiliários (CVM),[5] presta fundamental serviço no âmbito do mercado de capitais, mas não os fornece no mercado de consumo, tampouco ao público em geral, pois mantém apenas uma relação interempresarial com as corretoras de valores mobiliários. Desse modo, não há que se falar em relação de consumo entre os investidores e a ECL e, logo, em aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) ao caso concreto.
Constatada a não incidência do CDC na relação entre investidor e ECL, a relatora examinou, na sequência, a responsabilidade civil da recorrente à luz dos direitos e deveres fixados em normas específicas. De acordo com o artigo 3º da Instrução CVM nº 115/1990,[6] vigente à época dos fatos, a entidade responsável pela custódia das ações só pode movimentá-las “à vista de ordem escrita do depositante ou de procurador legalmente constituído”.
Nesse contexto, a ECL tem o dever de obedecer estritamente à ordem do depositante, que é a corretora – responsável por depositar as ações em conta mantida na ECL, em nome de seu cliente. Para a ECL, portanto, basta a ordem escrita da corretora (ou de procurador constituído por ela), sem a necessidade de conferir os documentos do investidor – tarefa essa que é atribuição da CTVM.
Em resumo, a ECL “não tem o dever de verificar a legitimidade da procuração do investidor, mas tão somente o de assegurar o adequado cumprimento da ordem dada pela corretora”,[7] já que as procurações sequer chegam a ser analisadas pela ECL, “não havendo, assim, como imputar a ela uma conduta culposa por não ter verificado a falsidade do documento”.[8]
Tal entendimento vai em linha com precedentes do STJ citados pela relatora em seu voto, (i) sobre o dever das corretoras de indenizar o prejuízo sofrido pelo investidor decorrente da venda indevida de suas ações, por meio de apresentação de procuração falsa perante a respectiva CTVM,[9] e (ii) sobre a impossibilidade de se responsabilizar a ECL pelos prejuízos decorrentes da negociação de ações mediante uso de procuração falsa apresentada à CTVM.[10]
Pelo exposto, a terceira turma do STJ deu provimento ao Recurso Especial para julgar improcedente a responsabilização da ECL pela venda das ações de titularidade da autora em bolsa de valores com a utilização de procuração falsa, uma vez que é dever da corretora verificar a legitimidade dos documentos.