No último dia 7 de dezembro, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) apreciou o processo de acompanhamento TC nº 026.456/2020-6, constituído com o objetivo de examinar a legalidade e legitimidade dos processos de formação das parcerias estratégicas – joint ventures – instituídas pela Caixa Cartões no âmbito dos desinvestimentos da Caixa Econômica Federal (CEF).
Em linhas gerais, a estratégia implementada pela CEF, com o propósito de reduzir a sua atuação em determinados segmentos econômicos, foi a de estabelecer parcerias estratégicas com o setor privado, por meio da constituição de joint ventures, para a exploração de 5 verticais de negócios relacionadas a meios de pagamento de sua subsidiária integral, a Caixa Cartões: Adquirência, Pré-Pago, Fidelidade, Novos Negócios, Bandeira.
No caso concreto, o TCU analisou o arranjo societário de uma joint venture constituída para atuação no segmento Adquirência, cuja maioria das ações com direito a voto pertenceria ao particular, enquanto a gestão dessa nova sociedade seria realizada de forma conjunta pela própria Caixa Cartões e pelo parceiro estratégico, em razão da previsão da possibilidade de celebração de um acordo de acionistas.
Em outras palavras, o Tribunal de Contas da União teria competência para se imiscuir na análise desta operação em razão da constituição de uma nova companhia na qual a Caixa Cartões poderia exercer o controle material, na forma da Lei das S.A. (Lei nº 6.404/76), em detrimento do exercício do controle formal, previsto no Decreto-Lei nº 200/67 e na Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16).
Dada a possibilidade de compartilhamento do controle desta nova sociedade entre o parceiro privado e o ente estatal, a equipe técnica do TCU se voltou a análise da possibilidade de classificação dessas joint ventures como empresas subsidiárias da Caixa Cartões, o que atrairia a incidência das disposições da Lei das Estatais a essas novas entidades.
Na oportunidade, a Corte de Contas pontuou que a joint venture em questão seria uma empresa de terceiro grau, por ser uma controlada ou subsidiária da Caixa Cartões, que, por sua vez, é subsidiária integral da CEF, empresa-mãe instituída diretamente pela União. Nessa linha, por ser subsidiária de uma estatal, estaria sujeita ao regime jurídico da Lei das Estatais, conforme dispõe o art. 1º, § 6º dessa lei[1].
O ponto central de debate é que a Lei das Estatais não tratou da fixação do critério que deveria ser empregado, com o propósito de identificar o agente que detém o controle acionário das subsidiárias das empresas estatais. Com efeito, o art. 3º da Lei[2] estabelece que empresa pública é a entidade cujo capital social é integralmente detido pelo ente estatal que a criou.
Já o art. 4º da Lei[3] dispõe que sociedade de economia mista é a entidade cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria ao seu ente estatal criador. Não há dúvidas, portanto, que a Lei das Estatais, seguindo a linha do Decreto-Lei 200/1967, adotou o critério formal para a conceituação do controle das estatais de primeiro grau.
Todavia, o legislador nada dispôs sobre a aplicação do critério material ou formal para a qualificação do acionista controlador das subsidiárias constituídas pelas empresas estatais. Desse modo, por meio de uma interpretação sistemática do art. 1º, § 6º e do art. 7º da Lei das Estatais[4], o TCU adotou o entendimento de que o regime jurídico societário, que deveria ser observado pelas subsidiárias das empresas estatais é aquele que incide sobre as empresas privadas e que foi positivado na Lei das S.A.
Nesse sentido, o ministro Bruno Dantas concluiu que o conceito de controle, que deve ser aplicado às subsidiárias das empresas estatais, é aquele previsto no art. 116 combinado com o art. 243, § 2º da Lei das S.A.[5], qual seja, o controle material, de acordo com o qual o controlador é aquele que detém poderes suficientes para prevalecer nas deliberações sociais e para eleger a maioria dos administradores.
Desse modo, no caso concreto, as joint ventures firmadas pela Caixa Cartões nos processos de desinvestimentos da CEF estariam sujeitas ao conceito de controle material, independentemente do fato de o controle acionário advir de participação minoritária estatal na sociedade. Assim, verificada a influência dominante da estatal na nova sociedade, essa entidade se submeteria “aos influxos publicitas advindos do direito público, como o dever de prestar contas ao Tribunal”, nos termos da Lei das Estatais.
A decisão reforça posição já adotada anteriormente pela Corte de Contas no Acórdão 1.220/2016-TCU-Plenário[6], no sentido de que o exercício do poder de controle pelo ente estatal em uma sociedade se traduz não apenas pelo seu controle formal, mas também pelo controle material. Na visão do TCU, “o exercício pelo Estado da preponderância do poder de controle numa empresa público-privada importa na sua caracterização como uma sociedade de economia mista de fato.”
Ao final do julgamento do processo de acompanhamento do desinvestimento da Caixa Econômica Federal, o ministro Bruno Dantas determinou a criação de um grupo de trabalho pela Secretaria Geral de Controle Externo que, em conjunto com atores externos, em especial, com representantes do Ministério da Economia, deverá: (i) definir critérios objetivos para a identificação da existência de influência dominante de uma empresa estatal em um grupo societário no qual possua participação minoritária nas ações com direito a voto; e (ii) aperfeiçoar os mecanismos de controle, fiscalização, gestão e governança nas parcerias estratégicas entre empresas estatais e empresas privadas, com vistas a evitar a burla aos normativos e princípios da administração pública vigentes.
Por ordem do ministro, o Acórdão também deverá ser encaminhado à Casa Civil da Presidência da República e ao Ministério da Economia para que avaliem a conveniência e oportunidade de reexaminarem o texto do art. 2º do Decreto 8.945/2016[7] – que regulamenta a Lei das Estatais –, diante do cenário de aprimoramento dos conceitos societários relacionados às parcerias estratégicas firmadas pelas empresas estatais, e comunicarem às empresas públicas e sociedades de economia mista sobre o entendimento do Tribunal.
A decisão representa um leading case para futuras operações que envolvam parcerias estratégicas entre empresas estatais e o setor privado, contudo, está propensa a controvérsias. Em especial, diante da possibilidade de causar efeitos dissuasórios à celebração de novas parcerias societárias ao sujeitar as entidades criadas por essas parcerias ao regime de direito público, impactando a competitividade desses entes no mercado, conquanto o § 7º do art. 1º da Lei das Estatais[8] já garante o exercício de práticas de controle e governança pelas empresas estatais e suas subsidiárias nas participações em que não detenham o controle acionário, como mecanismo de proteção ao interesse público que justificou sua criação.
A equipe de Direito Público do Bocater, Camargo, Costa e Silva e Rodrigues Advogados continuará acompanhando as repercussões da decisão e permanece à disposição para esclarecimentos adicionais.
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[1] Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos. (…) § 6º Submete-se ao regime previsto nesta Lei a sociedade, inclusive a de propósito específico, que seja controlada por empresa pública ou sociedade de economia mista abrangidas no caput. (grifou-se)
[2] Art. 3º Empresa pública é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios.
[3] Art. 4º Sociedade de economia mista é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou a entidade da administração indireta.
[4] Art. 7º Aplicam-se a todas as empresas públicas, as sociedades de economia mista de capital fechado e as suas subsidiárias as disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e as normas da Comissão de Valores Mobiliários sobre escrituração e elaboração de demonstrações financeiras, inclusive a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado nesse órgão.
[5] Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:
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a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.