O presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Ministro Bruno Dantas, propôs a criação de um Grupo de Trabalho (GT) com o objetivo de aprimorar a eficácia da atuação da Corte em casos relacionados à fiscalização de operações de mercado de capitais. O GT terá um prazo de noventa dias para elaborar um estudo buscando a melhor forma de atuação nessas transações.
A sugestão foi apresentada ao término da sessão extraordinária de 9 de abril, durante a qual foram examinados três processos envolvendo a BNDES Participações, subsidiária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDESPar) e a JBS S/A (JBS), empresa brasileira do setor de alimentos.
Tais operações aconteceram entre 2005 e 2014, tendo a análise do TCU analisado supostos indícios de danos e irregularidades associados a aportes de capital e aquisição de participação acionária pela BNDESPar na JBS1. Ao final do julgamento, por maioria, o plenário acatou as defesas apresentadas pelos responsáveis arrolados nos processos. O voto vencedor, do Ministro Jorge Oliveira, concluiu pela ausência de prejuízo aos cofres públicos, bem pela não identificação de falhas graves ou erros grosseiros que justificassem a imposição de sanções pela Corte de Contas.
O julgamento gerou a reflexão a respeito do papel do TCU na fiscalização de casos envolvendo o mercado de capitais, de natureza complexa, principalmente ao levar em conta que já existem órgãos especializados nesse tipo de fiscalização, como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Nesse contexto se insere a proposta de criação do GT, que será integrado pelos Ministros Antonio Anastasia (coordenador), Vital do Rêgo e Jorge de Oliveira, buscando fortalecer as atividades de controle e supervisão do Tribunal nessa área.
A reflexão perpassa pela delimitação do tipo de controle a ser exercido em situações dessa natureza: de primeira ou de segunda ordem. Isso se refere ao tipo de abordagem a ser adotada pela Corte de Contas em sua atuação fiscalizatória, inserido em um contexto de expansão de suas competências por meio de suas próprias decisões e normativos.
O controle de primeira ordem corresponde a uma fiscalização direta exercida pelo Tribunal nos órgãos e entidades da administração, sujeitando-os à sua jurisdição. Por sua vez, o de segunda ordem se refere a uma atuação “indireta”, na qual o TCU fiscaliza a atuação dos órgãos e agências reguladoras, sem adentrar necessariamente no mérito de suas decisões, atuando de forma complementar.
Os julgamentos de 9 de abril ilustram uma fiscalização de primeira ordem do Tribunal, que direcionou suas análises de forma direta nas operações realizadas pela BNDESPar. Contudo, diante dos desafios enfrentados ao longo da fiscalização, o ministro Bruno Dantas questionou se não deveria ser priorizada a fiscalização dos próprios órgãos reguladores do mercado de capitais, a fim de garantir o cumprimento de suas funções, a aplicação adequada das normas e regulamentos e a imposição de medidas preventivas e punitivas para possíveis infrações – caracterizando, assim, uma atuação de segunda ordem.
Em seu comunicado, o ministro citou o exemplo da Operação Lava Jato, na qual os Procuradores da República solicitaram a colaboração do TCU. No entanto, de acordo com o ministro, esse tipo de demanda vai além da mera verificação da legalidade e conformidade, e a expertise da Corte pode não ser suficiente para lidar com esses casos de alta complexidade. Além disso, ressaltou que alguns desdobramentos decorrentes do julgamento desses processos resultaram em avaliações complexas pelo Tribunal sobre o êxito comercial das operações em questão. Segundo ele, o controle de segunda ordem seria mais adequado em casos como os recentemente julgados, prestigiando a atuação dos reguladores de primeira ordem e contribuindo de maneira mais eficaz para o aprimoramento da gestão dos recursos públicos.
A Corte de Contas já vem adotando uma perspectiva de controle de segunda ordem em áreas como concessões de infraestrutura, fiscalizando agências e entidades reguladoras quanto ao cumprimento de normas e regulamentos2, e a criação do GT poderá se beneficiar dessa experiência.
Uma atuação de segunda ordem não significa que o Tribunal ficará impedido de examinar integralmente e supervisionar casos específicos quando for identificada evidente ilegalidade, irregularidade, falhas graves, entre outros aspectos, de forma a contribuir para a melhoria estrutural do processo de governança. Bruno Dantas, inclusive, citou outro caso julgado em sessão extraordinária envolvendo o BNDES como exemplo positivo do controle de primeira ordem, no qual foram emitidas recomendações relevantes ao Banco estatal para melhorar sua sistemática de exportações. Trata-se de julgado em sessão extraordinária realizada no último dia 5 de março, em caso que analisava suposto desvio de finalidade em operações de financiamento a exportações de bens e serviços de engenharia para empreendimentos rodoviários realizados no exterior3.
Os resultados dos trabalhos do GT podem representar um importante avanço no aprimoramento da atuação do TCU, levando em consideração a importância de sua integração com os órgãos reguladores.
A criação do GT, no entanto, suscita preocupações sobre o risco de “borrar ainda mais as fronteiras” entre os controles de primeira e segunda ordem. Ao buscar uma integração mais estreita com os órgãos reguladores, existe o receito de que o GT possa reforçar a tendência do TCU de se envolver em uma fiscalização de primeira ordem, mesmo quando alega estar exercendo um controle de segunda ordem.
Portanto, é crucial que sejam estabelecidas diretrizes claras a fim de evitar a sobreposição de competências, promovendo a cooperação eficaz e equilibrada entre o TCU e os órgãos reguladores no contexto da fiscalização do mercado de capitais, sem comprometer a integridade do processo regulatório ou a autonomia dos reguladores de primeira ordem.
A equipe de Direito Público do Bocater Advogados continuará acompanhando as repercussões da criação do Grupo de Trabalho pelo TCU e está à disposição para esclarecimentos sobre o assunto.
1- A Corte analisou operação de apoio da BNDESPAR à JBS, visando sua capitalização com a finalidade de adquirir a empresa americana Pilgrim’s Pride Corporation; a operação de aporte de capital da BNDESPAR na Bertin S/A e sua posterior incorporação pela JBS; e a operação de aporte de capital da BNDESPAR na JBS visando a aquisição da empresa Swift Foods & Co..
2- A atuação do TCU em fiscalização de segunda ordem envolvendo fundos de pensão foi analisada por nossos sócios Flávio Martins e Thiago Araújo em texto publicado na ABRAPP.
3- A importância desse julgamento para a política de apoio à exportação de bens e serviços pelo BNDES foi analisada por nossos sócios em artigo publicado na AgênciaInfra