Há um ano, o Tribunal de Contas da União publicou a Resolução TCU nº 344/2022 para regular a prescrição nos seus processos, definindo marcos interruptivos e termos iniciais. Tal normativo pôs fim na discussão que se alastrava há décadas[1] sobre a prescritibilidade dos processos da Corte, consagrando, a princípio, o alinhamento institucional entre o TCU e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que já entendia pela aplicação do prazo quinquenal da Lei n° 9.873/99 na Corte de Contas[2].
Por mais que hoje esteja pacificada a ideia de que, sim, os processos de controle externo no TCU devem, em regra[3], observar o prazo de cinco anos para sua instauração, bem como não podem durar para sempre, o que constitui a razão de ser da prescrição intercorrente[4], restam presentes dúvidas e embates interpretativos.
Como apontado por Vitória Damasceno e Mariana Carvalho, ainda há divergências entre STF e o TCU, como, por exemplo, o que seria o marco inicial. Isso porque a Corte de Contas não levou em consideração o termo inicial estabelecido pela n° Lei 9.873/99 e, de forma inovadora, introduziu novos marcos interruptivos.
Enquanto o STF privilegia a data da ocorrência do fato, a Resolução determina a ciência da ocorrência da irregularidade pelo TCU (art. 4º, inciso IV, Resolução), em uma linha subjetivista da actio nata.
Mas os atritos não se restringem às duas instituições. Após um ano, é possível notar que dentro do próprio TCU existem divergências sobre a aplicação da Resolução. Em primeiro plano, ressaltam-se os desacordos que surgem entre a Unidade Técnica e os ministros, abrangendo desde a interpretação acerca da incidência de marcos interruptivos, até o próprio termo inicial da contagem do prazo prescricional.
No Acórdão n° 2537/2023-Segunda Câmara-TCU, a Unidade Técnica, conforme estipulado no art. 5º da Resolução, concluiu que havia ocorrido a prescrição punitiva, mas não a intercorrente (art. 8° da Resolução).
No entanto, o relator não reconheceu a prescrição punitiva. Isso porque ele, diferentemente do Corpo Técnico, incorporou marcos interruptivos que não constavam nos autos processuais[5], mas que foram mencionados no Relatório da Tomada de Contas Especial (TCE) e que, portanto, mereciam ser considerados para análise da prescrição. Veja que a inclusão desses eventos, em razão de um entendimento diverso sobre o que deve ou não ser considerado para a contagem do prazo, impediu a continuidade da sua contabilização quinquenal, modificando o resultado do processo.
No entanto, o relator reconheceu a prescrição intercorrente, também em divergência com a Unidade Técnica. Ele constatou que o prazo teve início quando a irregularidade foi identificada, visto que não se trata de caso em que há prestação de contas, resultando, então, no arquivamento decorrente do reconhecimento da prescrição intercorrente.
Mas outro órgão também é relevante no tema das inconsistências internas sobre a Resolução: o Ministério Público de Contas (MPTCU).
No Acórdão n° 3184/2023-Segunda Câmara-TCU, que tratou de TCE relativa à omissão no dever de prestar contas dos valores captados por força do projeto cultural Pronac, a Unidade Técnica e o MPTCU divergiram quanto ao marco inicial a ser considerado para a contagem da prescrição intercorrente nesta hipótese.
O Corpo Técnico alegou que o prazo deveria ser deflagrado a partir da data-limite estabelecida para a entrega da prestação de contas final. Em contrapartida, o MPTCU sustentou, à luz da jurisprudência do TCU[6], que o ponto de partida para a apuração da prescrição intercorrente deveria ser a partir da ocorrência do primeiro marco interruptivo da prescrição ordinária, o que no caso se traduzia na emissão do despacho que reprovava as contas devido a omissão. No final, o Tribunal deu razão ao MPTCU e concluiu que a prescrição intercorrente não havia se efetivado.
Esse exemplo de embate entre Unidade Técnica e MPTCU não é isolado. Nos Acórdãos n° 2755/2023-Segunda Câmara-TCU e n° 3153/2023-Primeira Câmara-TCU, eles travaram notável divergência no tocante à consideração ou não da fase interna[7] das TCEs para contagem da prescrição intercorrente. Enquanto a Unidade Técnica não a considerava, o Parquet, entendia essa fase como parte integrante do processo administrativo, sujeitando-se, portanto, às disposições do art. 8º da Resolução, o qual disciplina a prescrição intercorrente.
O Tribunal, mais uma vez, compartilhou da visão do MPTCU. Mas esse alinhamento entre os ministros e o MPTCU não é uma regra.
No Acórdão n° 2936/2023-Primeira Câmara-TCU, a Unidade Técnica alegou que o termo inicial para a contagem do prazo prescricional deveria ser a data do Relatório de Auditoria do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), conforme o art. 4º, inciso IV, da Resolução.
Ainda que o MPTCU tenha concordado com a Unidade Técnica quanto à não ocorrência de prescrição, expressou discordância em relação ao termo inicial para a contagem do prazo. O caso tratava de uma Tomada de Contas Especial instaurada em virtude da não comprovação da regular aplicação de parte dos recursos repassados pela União ao Fundo Municipal de Saúde de Tarauacá/AC.
Para o MPTCU, o mencionado artigo estabelece que o prazo prescricional deve começar a partir do momento em que se teve conhecimento da irregularidade, apenas caso estes tenham sido identificados em uma auditoria conduzida pelo TCU, órgãos de controle interno ou pela própria entidade onde a irregularidade ocorreu. Por isso, o MPTCU sustentou que o prazo prescricional deveria ter início na data em que a fase de execução da auditoria realizada pelo Denasus foi concluída.
O Tribunal, dessa vez, não acompanhou o MPTCU. Os ministros seguiram a interpretação da Unidade Técnica, determinando que, no que se refere à contagem do prazo prescricional, a data do conhecimento da irregularidade em fiscalizações (art. 4º, inciso IV, da Resolução-TCU 344/2022) corresponde àquela na qual há o registro formal dos achados de auditoria, ou seja, a data em que é assinado o Relatório de Auditoria juntado ao processo.
No cenário apresentado, especialmente no caso mencionado, é notável a divergência de perspectivas entre dois dos órgãos envolvidos – o MPTCU e o Tribunal – em relação à interpretação do mesmo artigo da Resolução (art. 4º, inciso IV). O MPTCU considerou como ponto de partida para a contagem da prescrição a data do encerramento da auditoria no âmbito do controle interno. No entanto, o Plenário estabeleceu a data da assinatura do Relatório.
Isso porque, a Corte de Contas, em momentos posteriores, já emanou entendimento no sentido de que, para fins de aplicação do referido inciso, o conhecimento das irregularidades é contado a partir da assinatura do documento que identifica os achados fruto da auditoria, como parecer ou relatório final[8].
Os exemplos apresentados apenas ilustram uma parcela das nuances tortuosas relativas à interpretação e aplicabilidade dos marcos relevantes para contagem da prescrição do Tribunal. Por mais que esteja pacificada a incidência do prazo quinquenal, o fato de haver divergência dentro do próprio TCU demonstra que ainda há caminho a ser percorrido no debate para que haja efetiva consolidação sobre a aplicação da prescrição na Corte de Contas, com a necessária segurança jurídica para seus jurisdicionados, evitando aplicações discrepantes.
A equipe de Direito Público do Bocater Advogados continuará acompanhando a temática.